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Maria de Fátima Carioca - AESE 31 de Julho de 2024 às 08:10

O futuro do descanso

Como organização, ter pessoas que sistematicamente não descansam, que vivem correndo freneticamente maratonas ditadas pelo que há que fazer, é um mau princípio de liderança e de gestão.

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As férias de verão aqui estão! As férias são, genericamente, uma pausa profissional, uma alteração na rotina, um momento de descanso. Ou seja, é o tempo de “desfazer o cansaço”. Por isso e porque o cansaço se vai acumulando e a tensão gera saturação, tudo nos predispõe para que as férias sejam verdadeiramente desejadas.

Num tempo em que é tão discutido o futuro do trabalho, em que os modelos de trabalho são (e bem) equacionados de forma disruptiva e criativa, penso que é oportuno alargar o debate ao futuro do descanso e o modelo de férias que temos. É verdade que se fala (e algumas empresas já implementam) a semana de quatro dias, seja por potenciar uma maior taxa de emprego, seja por proporcionar um ritmo de vida, talvez, mais humano, de quatro dias de trabalho e três dias de descanso profissional. Mas não chega.

Em primeiro lugar, vejamos o conceito das férias profissionais. No caso de Portugal, a lei laboral prescreve, como mínimo, o direito a 22 dias úteis de férias, seguindo um padrão semelhante à maioria dos países europeus (entre 4 a 5 semanas, de acordo com dados da OCDE) e podendo gozá-las com alguma flexibilidade. As férias, no modelo atual, tal como a própria lei refere, são um direito, mas passaríamos, todos (empresários e colaboradores em geral), a olhá-las como um dever ao entender o profundo sentido do descanso. Atualmente, em média por país, entre 30 a 40% dos empregados em idade ativa, não utilizam todo o tempo de férias. E as duas razões mais citadas são “preferem receber a remuneração compensatória”, possível em situações concretas nalguns países, ou “devido ao trabalho que exercem”. Estas razões conduzem-nos, naturalmente, a questões como: há quem passe necessidade na nossa organização? Que nível de salários praticamos? Como se distribui o trabalho que há que fazer e a responsabilidade pelo mesmo na nossa organização? Contudo, a pergunta que muitas vezes não fazemos e que é fundamental é: o que estamos a perder, pessoalmente e como organização, ao não gozar as férias?

Por um lado, é um perigo que pode atingir a nossa vida, quando o entusiasmo em cumprir a missão, ou o trabalho, bem como o papel e as tarefas que nos são confiadas, nos tornam vítimas do ativismo. É a ditadura do fazer! Demasiado preocupados com o que temos a fazer, demasiado preocupados com os resultados, acontece que ficamos inquietos e perdemos de vista o essencial (o “para quê”), correndo o risco de esgotar as nossas energias e de cair no cansaço do corpo e do espírito.

Por seu turno, o descansar levar-nos-á a não estar consumidos pela ansiedade do fazer e da rotina diária. O descanso de que falo não é uma fuga do mundo. Paradoxalmente, quando andamos atarefados, corremos, pensamos que tudo depende de nós e, no final, corremos o risco de nos vermos como imprescindíveis, de nos colocarmos no centro de tudo. Pelo contrário, o parar permite-nos levantar a cabeça, contemplar o mundo, aprender coisas novas, olhar os outros à nossa volta e sentir as suas necessidades. E todos necessitamos deste ritmo da vida entre o cansar-se, entregando-se no fazer, e o desfazer desse mesmo cansaço. Um e outro, tal como a inspiração e a expiração, são movimentos que se completam e que, só em conjunto, nos permitem respirar, ou seja, viver.

Como organização, ter pessoas que sistematicamente não descansam, que vivem correndo freneticamente maratonas ditadas pelo que há que fazer, é um mau princípio de liderança e de gestão. A seu tempo secarão as ideias, a inovação, a produtividade e as próprias pessoas. E quando somos os próprios a dar o exemplo é mesmo um péssimo princípio de liderança.

Em segundo lugar, pensemos também nas férias escolares. Em Portugal, de novo segundo dados da OCDE, as nossas crianças têm cerca de 15 semanas de férias, distribuídas ao longo do ano, ligeiramente acima da média europeia que se situa em 13,8. Como se ocupam as crianças nas cerca de 10 semanas que os pais não podem acompanhar? Muitos ocupam-se em campos de férias e outras atividades especificas destes períodos, muitas delas organizadas pela própria escola que frequentam durante todo o ano. Mas não deixa de ser uma preocupação para muitas famílias e, no final, não nos enganemos, os filhos acabam por ter verdadeiramente as férias que os pais têm somado a algum tempo em que são acolhidos pelos avós.

Ou seja, estamos a criar uma geração que não descansa verdadeiramente e, pior, estamos a criar uma geração com uma gigantesca desigualdade social entre os que têm acesso a atividades formativas e os que sem possibilidade de as ter, entre os que têm avós com tempo, saúde e disposição para conviver com os netos e os que não têm esse ambiente familiar.

É por isso tempo de repensar toda a organização do trabalho. Será a semana de quatro dias a solução ideal? Ou quem o quisesse, não poderia utilizar esses 48 dias a mais (9,5 semanas) para os desfrutar durante as férias escolares dos filhos? No final, teríamos o mesmo número de semanas de férias para os pais e para os filhos. E isso, sim, permitiria um grande salto qualitativo na vida familiar, com repercussões muito positivas na sociedade e no futuro.

Bem sei que o modelo não seria desejável para todos, mas seria um modelo mais. A flexibilidade laboral deve ter como base a pluralidade de modelos e a possibilidade da personalização de acordo com as preferências pessoais e as necessidades da organização.

Por agora, desfrutemos do que temos, lembrando-nos de que não se trata apenas de ter um tempo para o descanso físico, mas ser também repouso do coração. Não é suficiente “desligar a tomada”, é preciso descansar verdadeiramente, para não passar da correria do trabalho à correria das férias. É um tempo para parar, desligar o telemóvel, desfrutar da natureza, inspirar cultura, desenvolver ideias que não encontram espaço para ser pensadas durante a azáfama do ano, e, sobretudo, regenerarmo-nos, simplesmente, estando, conversando e reforçando a cumplicidade em casal, em família, com os amigos e, também, com Deus. Não desperdicemos o tempo de férias. Aproveitemos o verão para tudo isto! Boas férias!

 

Não é suficiente “desligar a tomada”, é preciso descansar verdadeira- mente, para não passar da correria do trabalho à correria das férias.
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