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03 de Março de 2020 às 09:50

Suspeitas sobre a justiça e Pompeia Sula, mulher de César

O campeonato da popularidade é para outros, não é para juízes. No dia em que assim for, então estaremos muito mal, como aliás já se viu noutros tempos ou neste tempo.

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Talvez por ter lido há pouco tempo “Augustus” de John Williams, e assim ter recordado Lívia, a mulher de outro César que não a desafortunada Pompeia que deu origem ao provérbio, ando mais desconfiado acerca das proclamações sobre o ser e o parecer honesto. Vem isto a propósito de suspeitas agora muito enfatizadas sobre o funcionamento do nosso sistema de justiça “ao seu mais alto nível” (como se diz). Têm sido afirmadas sobre isso muitas coisas, que se podem arrumar essencialmente em três categorias.

Um: que são suspeitas graves e que têm de ser seriamente encaradas e investigadas e – se acaso se confirmarem pelos meios próprios e em seu tempo – punidas. Estou de acordo, pois claro, e creio que estamos todos, tanto mais quanto o sistema de justiça tem aquela fundamental e última função de garantia a que aludia o moleiro prussiano.

Dois: que a simples existência de suspeitas desacredita o sistema e causa erosão na confiança da comunidade no mesmo. Também estou de acordo, e também não é difícil que estejamos todos; embora aqui haja que ser cauto nalgum segundo passo subsequente àquela afirmação, e não pôr gasolina na fogueira, porque suspeitas são suspeitas, é grave em si e é grave no efeito que têm, mas são para já apenas suspeitas. Esta nuance faz toda a diferença, e uns carregam na pedagogia, sem abandonar a firmeza na investigação e, se for o caso, na punição, outros preferem elevar já a voz, quando não mesmo fazer generalizações e elaborar conclusões tremendistas ou providenciais, e provocar um esganiçamento que não serve a ninguém, a não ser a alguém mais talhado a montar o cavalinho do populismo. Firmeza e seriedade, sim, mas calma e prudência. Rende muito a alguns a curto prazo reduzir tudo a cacos, mas isso não rende nada a todos a longo prazo.

Três: que a justiça é como a mulher de César, não lhe basta ser séria, tem também de o parecer. Ora, eu aqui já começo a ter as minhas dúvidas e as minhas inquietações. (E venham lá os do costume com os processos de intenção sobre os ditos “advogados dos poderosos”, que eu tenho as costas largas e tanto se me dá, e não recebo lições de integridade cidadã de bufões, saltitões ou de emprenhados de ouvir dizer. Dava-me “mais jeito” e mais likes não escrever este artigo, mas não andamos cá todos para o que dá mais jeito ou para o que melhor soa...) E tenho as minhas dúvidas sobre essa proclamação acerca da mulher de César, porquê? Primeiro, porque não sei bem o que com isso se quer significar. Segundo, porque desconfio que alguns querem com isso dizer, como os inquisidores da novela de Sena “O Físico Prodigioso”, que certas emergências justificam tudo e que há que ser implacável, rapidamente e em força, suspendendo todo e qualquer regulamento. Ou seja, para matar o bicho da desconfiança, não vamos sequer de quarentenas, vai logo uma fumigação, fecha-se tudo na gafaria, e ainda se salga a terra, e quem vier depois que feche a porta, se porta houver – algum homem ou mulher providencial, naturalmente, que nestas coisas há sempre muitos pecadores e um ou dois santos (de reserva ou de geração espontânea).

 

A justiça é como a mulher de César, não lhe basta ser séria, tem também de o parecer.



Terceiro, e principalmente, porque este discurso da mulher de César (e recordando, aliás, que o que parecia quanto à desafortunada Pompeia até nem seria, afinal, bem assim) pode conduzir a uma suspeição tão generalizada e tão forte, capaz de levar à tentação da autodefesa mais fácil, que é: a partir de agora, levar tudo adiante para não haver suspeitas. É poderoso? Caiu na desgraça pública? O povo clama pelo suplício dos Távora? Então sejamos implacáveis, para não sermos suspeitos. Como? Não interessa, o que interessa é parecer isento a toda a prova. Tem febre, tosse, respira mal? Nem se analisa, é coronavírus, deve ser, só pode ser, cá vai uma fumigação. Ora, isto é tão mau quanto o moleiro prussiano não ter razão: quero em Berlim juízes honestos, claro, mas também os quero corajosos (e capazes, naturalmente). Que se defendam e pareçam, além de o serem, sempre honestos e fortes. Mas isso faz-se com a maior das garantias do processo, a mais importante: uma fundamentação séria e a sério, e igual para todos, “fracos” ou “fortes”. Não se faz com decisões populares. O campeonato da popularidade é para outros, não é para juízes. No dia em que assim for, então estaremos muito mal, como aliás já se viu noutros tempos ou neste tempo (noutras paragens, principalmente, mas não apenas lá). Espero bem, e faço fé, que assim não será. E, além de fazer fé, escrevo isto. É o mínimo.

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