Opinião
Elza Soares questionando o Direito Natural
Ficam destroços suficientes para, trinta anos depois da entrada na universidade, ainda não estar nada convencido sobre o Direito Natural.
Há cerca de três dias, num texto para publicação futura, acerca da possibilidade e do perigo de uma democracia iliberal (no sentido de não respeitar liberdades individuais em consequência de votações maioritárias), escrevi: "Os direitos humanos, especialmente os fundamentais, devem ser barreiras ao exercício democrático, devem ser (para usar a expressão feliz de um constitucionalista) trunfos contra a maioria. Mas - e essa é pergunta de um milhão em qualquer moeda (...) - resta sempre a questão de saber que direitos fundamentais são esses, onde estão inscritos, quem os dita ou revela, quais as suas fontes?"
Enunciei ali, e entre outras, o jusnaturalismo como uma das possibilidades de resposta, mas acabou o espaço disponível para o texto (e o tema central era outro), e não fui mais longe. Mas ficou-me, novamente, a bailar em atrevido desafio, a interrogação sobre o jusnaturalismo que me acompanha pelo menos desde a universidade. Percebo as teorias, compreendo a sedução, alcanço o conforto, gosto da ideia. Quem não gosta de pensar em princípios que se impõem e evidenciam por si mesmos, universais, tendencialmente imutáveis ou pelo menos resultado de sucessivas camadas de revelação "do justo", que decorrem da natureza social da pessoa humana e não dependem da vontade das sociedades e da sua expressão em leis, et cetera? É quase - como diria um professor meu, dado ao positivismo e a tiques de ironista - como buscar conforto na transcendência ou, ao menos, como se deliciar com um "direito superstar". Mas lá que é uma belíssima ideia, isso é, e ainda mais se, em vez da simplificação que aqui estou a fazer, recordarmos os muitos que profundamente pensaram e teorizaram sobre o tema ao longo dos séculos.
Mas sempre me inquietou, e inquieta, sobretudo a questão das fontes e da segurança. Por mais que estude, leia e releia, não fico tranquilo. De São Tomás (para não ir mais atrás) até hoje, evoluiu-se muito, fico melhor com algumas das teorias dos séculos XIX ou XX por exemplo, como as que apelam bastante ao papel da acumulação e da aquisição e dos ensinamentos da História e da experiência. Mas, ainda assim. Sempre, e sempre, um mas. E, nesse grande mas, vem-me à cabeça, em insinuante associação de ideias, a poderosa canção de Elza Soares, com uma batida forte a embalar palavras aceradas. De uma penada, ela pode matar qualquer possibilidade de jusnaturalismo. Mesmo descontando algum radicalismo possível dos versos, mesmo atenuando a crueza de uma voz feita em décadas de vida, desassombro e desencanto, ficam destroços suficientes para, trinta anos depois da entrada na universidade, ainda não estar nada convencido sobre o Direito Natural. A canção chama-se "Um Olho Aberto", e lá, entre o mais, diz-se assim, se não falho: "Ora, cara, não me venha com esse papo sobre a natureza / Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia / Uma natureza que é a sua cara / Uma natureza cuspida e escarrada / Onde existe o dito natural e um animal perfeito mora / Onde a verdade é garimpada até não sobrar nada."
Pois, Elza. O Direito Natural é muito inspirador, mas um pouco traiçoeiro, pois seduz e conforta, mas escavando um pouco mais deixa-nos um travo amargo de incerteza. É o problema das belas formulações, cuja beleza não supera os problemas decorrentes da indagação e dos detalhes. O imperativo categórico de Kant, por exemplo, pode sofrer do mesmo mal num certo sentido, pois é belíssimo (e certo) afirmar que se deve agir como se cada máxima pudesse ser erigida em lei universal, tratando assim o outro como a si mesmo, mas é possível esbarrar na questão de saber quem é o outro e quem o elege como tal. E Tolstoi caiu na mesma ratoeira, ao abrir Anna Karénina com a frase inesquecível sobre a parecença entre todas as famílias felizes e a singularidade das famílias infelizes, pois - além de não ser verdade o que afirma, embora lhe sirva para uma literatura magistral - resta saber qual é a fonte da definição de felicidade e de infelicidade. Não que eu saiba as respostas, ou que renuncie à sedução da bela ideia, mas fica-me a sangrar, sem conforto, o rasgão da canção aguçada de Elza.
Enunciei ali, e entre outras, o jusnaturalismo como uma das possibilidades de resposta, mas acabou o espaço disponível para o texto (e o tema central era outro), e não fui mais longe. Mas ficou-me, novamente, a bailar em atrevido desafio, a interrogação sobre o jusnaturalismo que me acompanha pelo menos desde a universidade. Percebo as teorias, compreendo a sedução, alcanço o conforto, gosto da ideia. Quem não gosta de pensar em princípios que se impõem e evidenciam por si mesmos, universais, tendencialmente imutáveis ou pelo menos resultado de sucessivas camadas de revelação "do justo", que decorrem da natureza social da pessoa humana e não dependem da vontade das sociedades e da sua expressão em leis, et cetera? É quase - como diria um professor meu, dado ao positivismo e a tiques de ironista - como buscar conforto na transcendência ou, ao menos, como se deliciar com um "direito superstar". Mas lá que é uma belíssima ideia, isso é, e ainda mais se, em vez da simplificação que aqui estou a fazer, recordarmos os muitos que profundamente pensaram e teorizaram sobre o tema ao longo dos séculos.
Pois, Elza. O Direito Natural é muito inspirador, mas um pouco traiçoeiro, pois seduz e conforta, mas escavando um pouco mais deixa-nos um travo amargo de incerteza. É o problema das belas formulações, cuja beleza não supera os problemas decorrentes da indagação e dos detalhes. O imperativo categórico de Kant, por exemplo, pode sofrer do mesmo mal num certo sentido, pois é belíssimo (e certo) afirmar que se deve agir como se cada máxima pudesse ser erigida em lei universal, tratando assim o outro como a si mesmo, mas é possível esbarrar na questão de saber quem é o outro e quem o elege como tal. E Tolstoi caiu na mesma ratoeira, ao abrir Anna Karénina com a frase inesquecível sobre a parecença entre todas as famílias felizes e a singularidade das famílias infelizes, pois - além de não ser verdade o que afirma, embora lhe sirva para uma literatura magistral - resta saber qual é a fonte da definição de felicidade e de infelicidade. Não que eu saiba as respostas, ou que renuncie à sedução da bela ideia, mas fica-me a sangrar, sem conforto, o rasgão da canção aguçada de Elza.
Mais artigos do Autor
Diversidade, e um brinco no nariz (I)
07.04.2021
Vacinar a demagogia
02.02.2021
“Trial by (and for the) media” - Parte II
05.01.2021
“Trial by (and for the) media” - Parte I
16.12.2020