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Pedro Santos Guerreiro psg@negocios.pt 16 de Outubro de 2013 às 23:00

"Ai aguenta, aguenta"

Fernando Ulrich tinha razão, o povo aguentaria mais austeridade. Tanto aguentaria que aguentará este Orçamento. Por mais que Passos Coelho finja que isto é igual ao litro, isto é igual à tonelada. Vai valer a pena? Em vez de fazer de conta, façamos contas.

O presidente do BPI nunca desejou mais austeridade, avisou apenas que quem pensava que não era possível dar mais peso ao fardo estava enganado. É um facto: enganado estava. Como aqui se escreveu ontem, cortar custos do Estado é isto e isto só veio tarde, o que tornou tudo mais injusto; e este Orçamento não visa crescimento, nem reformas, nem justiça, visa apenas comprar bilhete para aceder aos mercados e ao programa cautelar. Mas agora emparedemos a alma e empedremos o coração. Pensemos como um computador. Analisemos os riscos.

O crescimento económico orçamentado (de 0,8%) depende um pouco do investimento e sobretudo das exportações e do mercado interno.

O aumento do investimento terá de ser sobretudo privado (o Estado permanece depenado) e estrangeiro (as empresas portuguesas continuam descapitalizadas e o crédito caro). A ferramenta do Governo, de descida do IRC, está longe de ser um choque fiscal. E mais importante que isso é a justiça e a estabilidade política, que não se legislam.

Para as exportações contribui a competitividade das empresas portuguesas e a procura externa, que não controlamos.

Para o mercado interno é preciso mais consumo das famílias. É aqui que entra o medo do "choque de expectativas". É curioso que o mesmo Governo que desejava o aumento da taxa de poupança (que se verificou) queira agora que esse dinheiro seja gasto. Como curioso é que o primeiro-ministro reconheça que esse aumento da poupança resulta de medo das famílias, mais do que de uma nova atitude cultural perante o consumismo, o crédito e a poupança. Se o primeiro-ministro tiver razão (e possivelmente tem), isso só quer dizer que quando estiver "tudo bem", os portugueses consumirão furiosamente como dantes. Não é grande perspectiva.

O problema é que o choque de austeridade não é apenas um choque de expectativas. Muitas famílias terão menos dinheiro. E é um paradoxo que o mesmo Governo que quer que os portugueses consumam mais queira também que poupem mais, pretendendo arrecadar 2,5 mil milhões em certificados de aforro e do tesouro. Com um corte de rendimentos, não é possível ao mesmo tempo gastar alegremente e poupar caninamente.

Que efeitos terá este choque no PIB, denominador de todos os rácios orçamentais? Sejamos ainda mais analíticos. Usemos os famosos multiplicadores, que em 2012 traíram a infalibilidade dos modelos do FMI e de Vítor Gaspar. O Governo vai cortar quase quatro mil milhões de euros, o que com um multiplicador de 0,8 (usado em 2012) significa que o PIB perderá 3,2 mil milhões de euros, ou quase dois pontos percentuais. Se assumirmos um multiplicador maior, de 1,5 vezes, então o efeito recessivo é de seis mil milhões de euros, ou um pouco mais de 3,5 pontos percentuais do PIB.

Estes são riscos reais, ou a diferença entre ter crescimento baixo ou regressar à recessão. Nesse caso, não se percebe, por exemplo, como espera o Governo encaixar mais quase 900 milhões em impostos, metade dos quais no IRS. Como, se não há mais emprego e se há corte de pensões e de salários? Depois das cabeleireiras, vão perseguir os engraxadores?

São perguntas estritamente lógicas sobre um orçamento que se diz estritamente lógico. Mas o OE não é apenas lógico, é também ideológico. Na descida do IRC. No aumento do orçamento do Ministério da Defesa e redução do da Saúde. No propor menos Estado e menos apoios sociais.

José Sócrates diz em entrevista ao Expresso: "Sou o chefe democrático que a direita sempre quis ter". Estou completamente de acordo. A "esquerda moderna" com que ganhou a maioria absoluta em 2005 é social-democracia de direita envergonhada que domina o PSD. Mas não com Passos Coelho, o mais liberal de todos que está mais liberal que nunca. A sua maior escravidão é, no entanto, não ser escravo do povo, mas dos mercados. Este Orçamento é deles. Para eles. E por eles. Que corra bem. Que valha a pena.

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