Opinião
Viseu e os Jardins Efémeros: com a criatividade no centro
Os "Jardins" são assim, também, uma forma de consagrar uma nova geração de Viseenses.
"Conhecem Viseu, a capital da Beira Alta? À parte as vias novas, abertas segundo a visão imediata das necessidades de trânsito e comunicação, trata-se de um velho burgo, enrodilhado como todos os aglomerados urbanos que vêm da Idade Média, ou atrás ainda, à volta dum núcleo, que para o caso sujeito é a Sé Catedral. Este edifício, antes de consagrado ao culto, teria sido alcáçova, castelo, castro, reduto da citânia pré-histórica."
Aquilino Ribeiro, "Arcas Encoiradas" (1962)
Estão na 4ª edição; regressam este ano de 2014, ano em que a cidade que os acolhe renova a sua qualidade indisputada de "melhor cidade para se viver", segundo a DECO. Dispenso-vos a habitual panorâmica sobre o real espírito aberto e cosmopolita do cartaz, já que este se pode facilmente conhecer "online", em jardinsefemeros.pt, onde consta um alinhamento híbrido em tempo e modo, de si eloquente. Mas uma consulta mais atenta fará constar também aqueles que devem ser vistos como os factores de potenciação do investimento e sua alavancagem, e que fazem destes "Jardins" mais do que um somatório de luzinhas da moda.
É de destacar aqui, sobretudo, a forma como a iniciativa se cruza com a cidade presente e passada, no seu íntimo. Tal é visível, por exemplo, na escolha criteriosa dos itinerários que a programação sugere, a não confundir com os cercados para gado montados por outras iniciativas em cidades bem maiores, onde mais meios não significam necessariamente melhores ou mais eficazes propósitos. Há uma diferença substancial entre decidir incluir uma cidade num qualquer roteiro de um qualquer evento e pensar um roteiro de criatividade para uma cidade em particular. O conjunto de iniciativas dos "Jardins Efémeros" merece o título de "programação" porque, por trás dele, está exactamente esse espírito. E dessa lógica advém uma gestão de escassez de recursos cuja inteligência merece o maior elogio. Elogio cívico e político, também.
Interessa aqui - e perdoem-me se me socorro da experiência pessoal para o fazer - ancorar o raciocínio em perspectiva com a história recente. Quem conhece Viseu, quem lá cresceu, dificilmente deixará de ver estes Jardins como algo do domínio do impensável há vinte ou trinta anos atrás. Embora a qualidade de vida tenha sido sempre uma constante de atractividade do burgo (mais a famigerada gastronomia), a verdade é que a esmagadora maioria dos viseenses nascidos depois do 25 de Abril se deparou sempre com uma inevitabilidade do destino: a saída da cidade após os dezoito anos, a saída para Coimbra, Porto e Lisboa para estudar (e/ou trabalhar), e o fim anunciado da relação umbilical que quase todos os portugueses gostam de fomentar com "a sua terra". Recordo hoje, com redobrada atenção, os alertas de alguma elite que, durante o furor desregrado do Cavaquismo e a torpe e saloia alegria das "novas estradas", não se cansou de lembrar que, ou a cidade trabalhava o seu carácter mais além daquilo que a história lhe tinha concedido, ou essas novas vias só serviriam para tirar dali gente. Era uma espécie de maldição migratória.
Hoje, cada vez mais, a parte da cidade profundamente empenhada na sua real autonomia parece ganhar protagonismo. Porque em todos os lugares há o bom e o mau, o que faz de facto uma comunidade é a qualidade dos seus protagonistas. Os "Jardins" são assim, também, uma forma de consagrar uma nova geração de Viseenses: e aqui o elogio tem necessariamente de ser feito a Sandra Oliveira, a "alma mater" deste programa fantástico que - como qualquer objecto que se preza e valoriza - tem na escolha exacta da dimensão adequada ao espírito da comunidade o seu maior trunfo distintivo, com a criatividade no centro de toda a acção. Não sei se Deus quer; mas a mulher sonha e a obra nasce, intangível, com são todas as coisas bonitas, nascidas da vontade de superação. Tudo acontece entre hoje, dia 11, e o próximo dia 2: é permitido pisar a relva.