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14 de Agosto de 2015 às 10:58

Incêndios: quando o interior bate à porta

Frivolamente, criámos uma paisagem que todos adoram, mas onde já ninguém mora. Os incêndios são mediáticos e, portanto, passíveis de que com eles se faça demagogia de todo o tipo.

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Nem todos os anos serão como o de 2003, ano em que arderam uns apocalípticos 425.839 hectares de floresta. O horror é incomensurável, mas vale a pena um exercício simples de análise de proporções centrado nos números desse ano: um hectare tem 10.000 m2; um campo de futebol de 50x100 metros tem uma área de meio hectare (5.000 m2); nesse ano arderam, portanto, mais de 850 mil campos de futebol. Talvez o nó no estômago que estes números causam só possa ser piorado pelo contexto actual em que esta tragédia recorrente nos visita, contrastando de forma quase sádica com o clima de festa que é o mês de Agosto. Este ano, só nos primeiros dias do mês de férias de eleição para a maioria dos portugueses, já perdemos 18.000 campos de futebol de floresta.

Há muitas maneiras de nos sentirmos chocados com os incêndios, a começar pela empatia para com quem os combate no limite das suas forças, e a acabar na elementar comiseração para com as populações por eles afectadas - gente para quem o que arde é sustento, feito de uma agricultura precária e de subsistência. Mas o fenómeno colectivo, no meu entender, ultrapassa o choque gráfico das imagens de horror com que nos brindam as televisões, incluindo o mau gosto de microfones enfiados na cara de quem acabou de perder tudo e mal consegue soltar uma palavra, tal é a vontade de largar as lágrimas.

O fenómeno dos incêndios toca no íntimo português pela forma como nos coloca numa posição de vulnerabilidade e impotência extremas, uma fragilidade que conhecemos bem da História recente e passada, e cujos medos atravessam a nossa visão cultural de nós mesmos, pondo-nos literalmente entregues à sorte da meteorologia, à mercê do destino. E, quando olhamos para lá dos números e nos concentramos nas zonas do país onde ocorre (ou recorre) o flagelo, salta à vista que o problema é um problema do interior do país - é como se, de repente e de forma irónica, os incêndios batessem à porta, irrompessem pela nossa sala de estar e nos lembrassem o disparate profundo que tem sido a nossa ingerência do território.

E essa ingerência, na minha opinião, parte de um problema nascido na concepção miserável e retrógrada que o Estado Novo propagandeava do território e da cultura de interioridade, e que a Democracia não soube resolver. Tanto para o antigo regime como para o actual, a agricultura e o seu papel no planeamento da economia e do território nunca passou da sua condição secundária de subsistência. O resultado está à vista, com o abandono imparável do interior, uma economia com um sector primário residual (incluindo as contas desse outro rosário, que são as pescas), demasiados serviços e uma demografia impensável. Isto inclui cerca de 3,6 milhões de pessoas (mais de um terço da população nacional) a residir hoje na Região de Lisboa e Vale do Tejo, e não refiro este número por razões regionalistas, mas por razões mais prosaicas - é óbvio que se torna impossível gerir sectores essenciais, como o mercado da habitação, quando os desequilíbrios territoriais são desta natureza. Que é, como quem diz, enquanto a terra onde ninguém mora arde, pagamos uma fortuna aos bancos para morar nas cidades (passo o simplismo implícito).

Uma espreitadela ao mapa da nossa ferrovia e à irrelevância a que está reduzida no que toca à integração litoral-interior (ou subúrbios-cidade) ajudará a explicar, a título de exemplo, como é que, frivolamente, criámos uma paisagem que todos adoram, mas onde já ninguém mora. Os incêndios são mediáticos e, portanto, passíveis de que com eles se faça demagogia de todo o tipo: houve meios, não houve meios, há crime, não há crime, foi o Governo, ou não foi o Governo, é preciso punir, somos demasiado brandos, etc... Com estes particulares, os incêndios trazem uma tragédia acrescida a toda a perda, que é o aumento da desconfiança das populações em relação ao poder, nomeadamente das populações locais em relação ao poder central; e mais do que procurar responsáveis e colher mediocremente méritos da desgraça, seria imperativo assumir este flagelo como, talvez, um dos mais transversais problemas da nossa sociedade e, quem sabe até, uma excelente oportunidade para redefinirmos o nosso conceito de progresso e prosperidade. Porque uma tragédia só tem utilidade se da sua catarse pudermos renascer fortalecidos. Senão, é só fútil melodrama.
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