Opinião
Nicolau do Vale Pais
09 de Outubro de 2015 às 10:21
A "tirania" da interpretação literal: a suposta "maioria de Esquerda"
Costa deixou órfãos todos aqueles que queriam uma alternativa séria ao Governo, sem sequer ter percebido, com a humildade devida, que o eleitorado lhe tinha reservado uma missão igual à do seu antecessor.
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Os eleitores escolhem circunscritos ao que o caldeirão media-partidos consagra como protagonistas; há, portanto, um critério subjectivo evidente, constituinte da própria liberdade e da forma como os poderes se organizam dentro dela. É realmente sobre esta intersecção de percepções que o eleitorado escolhe, somada ao contexto histórico, distante ou recente, a que podemos chamar de "cultura democrática".
Foi dentro desta cultura acumulada em 41 anos de liberdade que fomos a votos no passado domingo. Essa mesma cultura inclui um dado fundamental e incontornável: o partido vencedor das eleições lidera o Governo; esta é a nossa "jurisprudência". Embora tenha havido incontáveis coligações da mais diversa natureza nos nossos 41 anos de democracia - autárquicas e legislativas - nunca o vencedor das eleições deixou de governar. "O primeiro-ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais", diz a Constituição, omissa sobre a classificação de "vencedor", mas incontornável no que toca a quem tem, de facto, o poder de nomear. É o Presidente, também eleito, legitimamente, pelo mesmo eleitorado, pois claro.
O "povo" não votou "maioritariamente por governo de Esquerda" coisa nenhuma, pois ele não está, nem nunca esteve, implícito em nenhuma das três propostas de PS, CDU e BE. Essa conclusão é abusiva e de conveniência estratégica apenas aos partidos que perderam esta eleição; essa conclusão enviesa o sentido do voto de todos - o único dado não-relativizável - em nome do voto de alguns (sempre passível de especulação). Tenta-se assim rasurar a única ilação inteligente a tirar deste sufrágio: o eleitorado não elegeu maioria rigorosamente nenhuma, nem de Esquerda nem de Direita. Se o "povo" quisesse uma maioria de Esquerda, tinha-a dado a António Costa; porque não a quis, decidiu dispersar o seu voto de tal forma que o PS se limitou a conseguir resgatar uns meros 25% do bolo perdido pelo PàF. Tivesse António Costa coragem, e reconheceria que fez uma campanha desastrosa, fútil e errática; Costa deixou órfãos todos aqueles que queriam uma alternativa séria ao Governo, e a seguir montou uma festa no Altis, sem sequer ter percebido, com a humildade devida, o que o eleitorado lhe tinha reservado: uma missão igual à do seu antecessor, a de andar a apanhar os cacos da cada vez mais opaca história do seu partido.
Cuidado com "literal quando convém"; cuidado redobrado com as leituras ortodoxas da "vontade popular", já que elas podem muito bem no futuro ser usadas como forma fundamentalista de, por exemplo, garantir que uma maioria parlamentar não possa ser derrubada só porque é "maioria". Alguns dos mais obscuros regimes autocráticos resultaram, precisamente, de interpretações literais de sufrágios em nome da "estabilidade" (é o caso do III Reich). Mas se os heróicos defensores da nossa democracia insistem, deixo a sugestão: quando Cavaco Silva, usando do sentido de Estado que se espera do Presidente, recusar a hipotética "maioria de Esquerda", cumpram as promessas: derrubem o Governo, chumbando o programa ou o orçamento, aguardem pelas próximas eleições e candidatem-se os três juntos; veremos se é ou não o povo quem mais ordena. Ou na vossa teoria literal, não vos passa pela cabeça que se possa votar Bloco em qualquer circunstância, excepto na iminência de ele ser Governo, só para citar um exemplo?