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TC: bom senso para recuperar a soberania

O TC tem, pois, vindo a decidir como se existisse soberania – quando ela deixou de se verificar. E, se assim é, creio que teria toda a lógica que a acção dos Juízes se centrasse na recuperação por parte de Portugal dessa mesma soberania.

Não entendo que a Constituição da República Portuguesa seja um entrave à modernização e ao desenvolvimento do País, nem que impeça alterações, digamos, menos populares na esfera pública – por exemplo, descidas salariais ou de pensões de reforma, como as que constam do Orçamento do Estado para 2014 (OE’2014), opções tomadas pelo Governo para tentar cumprir a meta do défice (de 4% do PIB) imposta pela Troika. Na verdade, percorrendo a Constituição, não encontro nada que indicie, taxativamente, que opções como estas (ou outras que pudessem ser igualmente duras, mas consideradas necessárias) não possam ser legais. Em meu entender, a questão reside, unicamente, na interpretação que os Juízes do Tribunal Constitucional (TC) fazem da realidade na hora de decidirem da legalidade das matérias em questão.


Vem isto a propósito da fase que estamos novamente a atravessar, de expectativa quanto à (in)constitucionalidade de algumas medidas de austeridade, desta vez unicamente do lado da despesa pública. Novamente porque, na verdade, desde o OE’2011 (quando aconteceu o primeiro corte salarial na esfera pública, ainda na governação de José Sócrates) que tem sido sempre assim. Todos os anos. Sendo que só nesse OE as decisões do TC não colocaram em causa o exercício orçamental respectivo.

Aqui chegados, parece-me adequado recordar o artigo 1.º da Constituição (que, certamente não por acaso, é o primeiro): "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária". O nosso país é, pois, apresentado na Constituição como uma "República" que é "soberana" – o que deixou realmente de se verificar desde que, em Maio de 2011, fruto de uma trajectória insustentável de endividamento excessivo, a República se colocou nas mãos dos credores (a quem deve dinheiro), tendo o poder (soberano, já se vê) transitado para a Troika.

Portanto, desde essa altura que, em boa verdade, o primeiro artigo da Constituição – o mais importante, porque é nele que assentam todos os outros – deixou de ser... constitucional!... O TC tem, pois, vindo a decidir como se existisse soberania – quando ela deixou de se verificar. E, se assim é, creio que teria toda a lógica que a acção dos Juízes se centrasse na recuperação por parte de Portugal dessa mesma soberania. O que, não admitindo como razoável a possibilidade de mandar a Troika embora e decretar falência (o que, surpreendentemente, alguns ainda conseguem defender sem cuidar de explicar a catástrofe financeira, económica e social por que os Portugueses passariam, e que faria parecer as actuais dificuldades uma brincadeira), passa, objectivamente, por cumprir o que foi com ela acordado. Na verdade, decisões contrárias apenas criam dificuldades adicionais e, se vêm beneficiar alguns grupos de cidadãos, acabam por piorar a vida de todo o colectivo.

Trata-se, pois, em minha opinião, de simples bom senso. Um bom senso que, há 30 anos (em 1983), o TC, naturalmente composto por outros Juízes, soube ter: Portugal tinha, então, um governo do Bloco Central, com Mário Soares como primeiro-ministro e o saudoso Ernâni Lopes como ministro das Finanças. Na sequência de um pedido de ajuda financeira, na altura apenas ao FMI, foi acordado um duríssimo programa de austeridade que incluía, entre outras medidas, um imposto extraordinário que incidia apenas sobre rendimentos produzidos antes da entrada em vigor do diploma em causa – isto é, apenas com efeitos retroactivos. Contudo, no Acórdão n.º 11/83 do TC, o veredicto dos Juízes foi favorável, apesar de ser "indiscutível que o imposto em questão vem afectar a expectativa que os contribuintes podiam ter criado de que os seus rendimentos por ele atingidos ou não seriam pura e simplesmente tributados, ou não viriam a sofrer uma nova tributação". Porquê? Porque, se tratava "de um imposto que visa atalhar uma situação excepcional de défice, ocorrendo numa conjuntura económico-financeira de crise e reclamando medidas urgentes e imediatas para a sua contenção. Ora, este condicionalismo específico em que o imposto em causa é criado, e a natureza que em vista disso o mesmo imposto assume, não podem ser ignorados por este Tribunal, na emissão do juízo que lhe é solicitado", tendo o TC entendido que "no presente caso ocorrem circunstâncias que se sobrepõem à que acaba de se salientar [a retroactividade do imposto], circunstâncias que logo se manifestam no carácter extraordinário e transitório do imposto. (...) Ponderadas atentamente todas as circunstâncias (...) a retroactividade pode ser de todo reclamada e tornada necessária para a consumação dos objectivos da Constituição e para a realização do tipo de sociedade que ela visa". Não poderiam estas passagens do Acórdão n.º 11/83 do TC reportar-se perfeitamente à época actual, caro leitor?...

Então, como agora, a República Portuguesa não era objectivamente soberana. Porém, ao contrário do que agora sucede, Portugal dispunha, então, de taxas de juro que podia controlar e de moeda própria – o que facilitava bastante a aplicação de medidas de austeridade como os cortes nos rendimentos que a desvalorização cambial se encarregava de tornar bem reais, iludindo (monetariamente) os cidadãos. Agora, tem de ser tudo às claras. E como o Governo controla os salários na esfera pública, é aí que pode actuar (como Sócrates já tinha feito, de resto) – em alternativa a asfixiar ainda mais a sociedade com um esforço fiscal insuportável que só prejudica a recuperação económica sem a qual não teremos sucesso na recuperação da nossa soberania. Mais uma razão para, agora, o bom senso ser ainda maior do que há 30 anos...

Economista. Ex-Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças

miguelfrasquilho@yahoo.com

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