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Recompensa & austeridade

No seu discurso, Juncker nunca refere que seria adequado "voltar para trás". Nem insta os governos dos países de programa a deixarem de efectuar as reformas necessárias; nem a deixarem de lado a consolidação orçamental.

Na semana passada, dois altos responsáveis políticos europeus enviaram uma mensagem aparentemente contraditória sobre os programas de ajustamento em curso em diversos países europeus, como Portugal. 


Numa sessão no Parlamento Europeu, Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo e Presidente do Eurogrupo (em final de mandato) manifestou dúvidas quanto ao ritmo do ajustamento que está a ser imposto a certos países, acrescentando que o desemprego está a ser "subestimado" e classificando-o como "uma tragédia, que nos esmaga". Defendeu ainda que seria desejável colocar em prática "um sistema de recompensas para os países que cumprem". Porque, "actualmente, um país que esteja a cumprir não é recompensado". E acrescentou: "No caso de Portugal, por exemplo, gostaria que se reajustasse o ajustamento e as condições financeiras e orçamentais que acompanham esse ajustamento".

Depois foi o Presidente do BCE, Mario Draghi quem, falando em Frankfurt, na sede da sua instituição, salientou que os bons resultados das políticas nacionais (nos países a cumprirem programas de ajustamento) devem incentivar os governos a continuarem com reformas que reequilibrem as respectivas economias. Defendeu também que é tempo de ser perseverante e não complacente: "Já fizemos muito na consolidação orçamental e sabemos que tem efeitos contraccionistas de curto prazo. Mas agora que já fizemos tanto não me parece correcto voltar para trás".

Serão estas posições contraditórias? Não me parece. No seu discurso, Juncker nunca refere que seria adequado "voltar para trás". Nem insta os governos dos países de programa a deixarem de efectuar as reformas necessárias; nem a deixarem de lado a consolidação orçamental. Porém, como é evidente, os programas de ajustamento, desenhados em determinado momento no tempo, não podem, nem devem, ser estáticos: devem, a todo o momento, ter em conta as condições económicas, de modo a poderem ser o mais realistas possível e produzirem os resultados desejados, não redundando em fracassos que não interessam a ninguém (é por isso que são avaliados a cada 3 meses). Revejo-me, por isso, em ambas as afirmações e penso que elas são compatíveis. Eu próprio já proferi, em algumas ocasiões, declarações semelhantes: que, dada a conjuntura económica mais adversa que Portugal enfrenta (em relação ao previsto na versão original do Programa), os nossos credores deviam recompensar o trabalho competente do Governo mantendo o ritmo de concretização das metas qualitativas – as transformações estruturais, essenciais para aumentar a competitividade e relançar o crescimento económico –, mas ajustando as metas orçamentais (quantitativas), de modo a evitar um ciclo de austeridade sobre austeridade que poderia ser fatal. Nunca defendi, porém, que se devesse voltar para trás – não, isso seria um erro trágico. Nem nunca poderia ser o Governo Português a vir defender, na praça pública, uma recompensa (o que seria, certamente, entendido como sinal de incapacidade ou incompetência, com o inerente risco de se poder deitar tudo a perder).

Dir-me-ão que já tivemos ou teremos algumas recompensas: a taxa de juro média original do empréstimo da Troika já foi reduzida; as metas para o défice público de 2012, 2013 e 2014 já foram flexibilizadas (o que não evitou uma nova e substancial dose de austeridade – desta vez através, sobretudo, de um "enorme" aumento de impostos). E que poderemos ter também a (indispensável) ajuda do BCE no regresso aos mercados. E é verdade.

Argumentarão também que uma potencial nova flexibilização – "recompensa" – levaria, por certo, a que um défice de 3% do PIB fosse atingido para lá de 2014… o que faria regredir a confiança que, progressivamente, temos vindo a ganhar junto da comunidade internacional; colocaria em perigo o regresso de Portugal aos mercados financeiros; e (não menos importante) atrasaria a saída da Troika do nosso país, aprazada para Junho de 2014. Aqui já discordo. Porque se a percepção generalizada (nomeadamente dos ditos mercados financeiros) continuar a ser que Portugal está a fazer o seu trabalho de casa (como até aqui), e que novos ajustamentos ao Programa se deveriam a factores exteriores à actuação do Governo (por exemplo, à deterioração do ambiente económico), e se destinariam a torná-lo (mais) realista e credível, creio que, mesmo com défices orçamentais maiores em 2013 e 2014 (e também uma correspondente dívida pública mais elevada), a confiança até aumentaria, e Portugal regressaria aos mercados ainda este ano (como projectado), mantendo-se, depois, o pleno acesso, com ajuda do programa de compra de dívida do BCE (OMT, outright monetary transactions, em inglês)…

… Implicando, assim, com a agenda de transformação estrutural em curso concluída em 2014, como previsto, que a Troika poderia partir na data que também está prevista. E que, a partir daí, recuperando a soberania perdida, teríamos de completar a consolidação orçamental – provavelmente com perspectivas económicas mais animadoras (com as reformas em curso a dinamizarem já, por essa altura, a actividade).

Significa isto que se devia parar a austeridade?... Evidentemente que não, e desengane-se quem assim pensa: é preciso corrigir, de forma a não deixar dúvidas a ninguém, a trajectória insustentável que prosseguíamos e que culminou no pedido de ajuda externa. A questão é, apenas, de intensidade.

É por isso que, em minha opinião, Juncker e Draghi têm ambos razão. Que a recompensa e a austeridade não são incompatíveis. E que os países intervencionados – como Portugal – e, enfim, todo o projecto europeu, só teriam a ganhar com recompensas (financeiras e orçamentais, por exemplo), aos cumpridores que, sem colocar em causa a trajectória já cumprida, e sem "voltar para trás" (isto é, continuando a concretizar as medidas já previstas para o futuro), pudessem beneficiar em exequibilidade e credibilidade os programas em execução.

Cabe à Troika, na qual Juncker e Draghi são actores principais, retirar daqui as devidas ilações – e, sabiamente, decidir em conformidade.

Economista

Ex-Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças

miguelfrasquilho@yahoo.com

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