Opinião
21 de Janeiro de 2014 às 00:01
A Inevitável realidade
De acordo com Hollande, só as empresas são "capazes de gerar empregos sustentáveis", sendo que o combate ao desemprego, que afecta quase 3.3 milhões de franceses, é a sua prioridade.
Já fui criticado por alguns dos meus oponentes em debates em que participei devido ao facto de os confrontar com a realidade – e de chegar à conclusão que tudo o que defendem no campo económico pode ser muito estimável (embora eu discorde da maior parte), mas não é possível concretizar.
... Que, evidentemente, não levei a mal, nem tomei como críticas – porque não é disso que se trata. É que, em minha opinião, não há pior do que expressarmos aquilo que defendemos, as nossas ideias e soluções, as nossas alternativas, sem que elas tenham o mínimo de exequibilidade porque... não descemos à realidade.
Atenção, o que acabei de referir não deve ser confundido com conformismo ou resignação – que, evidentemente, não professo. Deve-se sempre tentar que as coisas possam correr como defendemos ou desejamos –, mas não de forma que se torne irrealista.
E nada melhor do que contactarmos com a realidade para percebermos que podemos estar... muito enganados. Como mostram os dois casos que a seguir aponto: um, a nível nacional; outro, internacional (em França).
Durante vários anos, Bernardino Soares, por quem tenho consideração e simpatia, foi deputado do PCP e líder da bancada comunista na Assembleia da República. Durante todo esse tempo, teve apenas de difundir "soundbites", na maior parte das vezes contra o "grande capital" e os "grupos económicos", bem como contra o "Pacto de Agressão" que constitui, para o PCP, o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), e a austeridade a ele associada (nomeadamente os cortes nas prestações sociais e na massa salarial na esfera pública). Sucede que, desde Outubro passado, Bernardino Soares é presidente da Câmara Municipal de Loures. E desceu à terra: ao tomar posse, deparou-se com um município depauperado, com uma situação financeira "dramática" (nas suas palavras), e a absoluta necessidade de tomar medidas que, na maior parte dos casos, são o contrário do que anos e anos a fio defendeu no Parlamento. Veja-se: realização de uma auditoria à gestão e à situação financeira do município; adopção de "inevitáveis medidas de redução da despesa"; avaliação das avenças e da prestação de serviços; reajustamento dos serviços da câmara... E mais: "Temos de ver onde podemos reduzir os custos"; "estamos a arrumar a casa"; "há que fazer muito com pouco". E decidiu também não aumentar o IMI para os residentes no concelho, porque isso lhes "dificultaria ainda mais a vida". Ou seja: cortar na despesa e não aumentar impostos para não degradar a economia do concelho – quem diria, hein?!...
O segundo caso que aponto tem que ver com o presidente francês, François Hollande, que depois de já ter desiludido os que depositaram nele a esperança de contrabalançar a gestão, digamos, muito alemã que tem sido feita da crise das dívidas soberanas na Zona Euro (nomeadamente para os países periféricos, nos quais se inclui Portugal), apresentou, na semana passada, um plano de austeridade que passa por uma ampla reforma do Estado – nas suas estruturas e funções – e por cortes mais profundos na despesa pública, designadamente nos "excessos e abusos" na saúde e prestações sociais, incluindo pensões. Tal significa, depois dos cortes de cerca de EUR 15 mil milhões na despesa pública programados para 2014, reduções adicionais de cerca de EUR 50 mil milhões para o período 2015-2017 (quase 2.5 pontos percentuais do PIB). Tudo isto com o objectivo de anular progressivamente o défice público e o peso do Estado na economia, de modo a criar margem para baixar os impostos sobre as empresas. E porquê? Porque, de acordo com Hollande, só as empresas são "capazes de gerar empregos sustentáveis", sendo que o combate ao desemprego, que afecta quase 3.3 milhões de franceses, é a sua prioridade. "Voilà". Depois das promessas da campanha eleitoral, François Hollande tem vindo progressivamente a perceber a realidade em que caiu e, face a ela, o que é necessário fazer para colocar "nos carris" uma economia estagnada e com um nível de endividamento público que começa a ser preocupante.
Creio que os dois exemplos são paradigmáticos e falam por si –, mas ainda os posso reforçar com a minha experiência: como se sabe, tenho defendido que o PAEF de Portugal deveria ter sido mais bem negociado de início e mais bem modificado – tornando-se mais realista – ao longo do tempo. Teria sido benéfico para todos – mas, infelizmente, não foi essa a leitura da Troika, que nos está a financiar e que tem "a faca e o queijo na mão". E, como tal, o que melhor tínhamos (e temos) a fazer era... mostrar vontade de cumprir e procurar alcançar resultados. Porque, pragmaticamente, dada a realidade, qualquer outra opção seria muitíssimo pior.
Quando não temos de lidar com a realidade (como sucedeu com Bernardino Soares e François Hollande antes de serem eleitos), tudo parece fácil – incluindo apontar potenciais caminhos e soluções que, depois, afinal... têm de ser metidos na gaveta. Por mim, procurarei sempre não me afastar da realidade – porque entendo que só assim conseguirei apresentar soluções concretizáveis. Quer enquanto economista, quer como professor ou político.
É na inevitável realidade que podem esbarrar as nossas ideias e a nossa (boa) vontade. Todos teremos a ganhar se nunca o esquecermos.
Economista. Ex-Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças
miguelfrasquilho@yahoo.com
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