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Opinião
27 de Abril de 2020 às 20:20

A dívida e a dúvida

Esta é uma crise económica imposta pela decisão de uma política sanitária que impõe a paragem das economias, não se resolve pela correcção dos balanços dos bancos nem pela adopção de políticas de ajustamento.

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A FRASE...

 

"Com medo de que alguns possam usar o sistema de modo fraudulento e injusto, sufocam-se todos."

 

João Duque, Expresso, 25 de Abril de 2020

 

A ANÁLISE...

 

Se o capitalismo é o regime do capital, uma crise económica que tenha a sua origem no congelamento súbito da actividade em todos os sectores da economia e no corte das relações entre economias tem como consequência transformar o capitalismo num regime da dívida.

 

Não se trata de um desvio ao padrão de equilíbrio nas relações entre as variáveis económicas que possa ser corrigido pela adopção de medidas que restabeleçam as relações sustentáveis entre essas variáveis, para controlar o crescimento da dívida e retomar a trajectória de crescimento que permita a reconstituição do capital. Trata-se de gerir a dívida para que ela não destrua a capacidade produtiva instalada e isso exige a reformulação da esfera social (o modo como cada grupo social defende os seus interesses altera-se quando se passa de um regime do capital para o regime da dívida) e a reconstrução das instituições internacionais (a configuração de áreas de influência e as hierarquias de potências passam para um plano secundário perante a urgência de absorver e canalizar os fluxos de dívida, quando isso já não pode ser feito na escala de cada economia nacional e só será possível com a utilização de instrumentos e de recursos que apenas existem na escala supranacional).

 

Esta não é uma crise económica como a de 2008 (desencadeada pelos erros na avaliação do risco dos créditos hipotecários que conduziu à crise dos sistemas bancários, erros que foram estimulados e alimentados pelo aumento de volume de capitais em circulação na economia mundial), nem como a crise de 2011 (aumento das dívidas públicas por desequilíbrios orçamentais que conduziu à crise das dívidas soberanas quando a avaliação pelos credores do risco da emissão de dívida pelos Estados justificou a subida das taxas de juro para valores que tornavam essas dívidas insustentáveis). Esta é uma crise económica imposta pela decisão de uma política sanitária que impõe a paragem das economias, não se resolve pela correcção dos balanços dos bancos nem pela adopção de políticas de ajustamento (então erradamente designadas como políticas de austeridade, quando a sua finalidade era a reposição dos equilíbrios fundamentais nas relações económicas), só poderá ser resolvida pela emissão de dívida para compensar os efeitos da paragem das economias – e se isso não for feito, é a capacidade instalada que será destruída.

 

É aqui que se coloca a dúvida. Na Europa, só a Comissão Europeia (como decisor político) e o Banco Central Europeu (como emissor da moeda comum) têm escala e capacidade para emitir e comprar a dívida que terá de ser contraída para manter a capacidade instalada nas diversas economias em condições operacionais até ser superada a crise sanitária. Nos Estados Unidos, no Japão e na Europa, o nível da dívida está no valor mais elevado desde a Segunda Guerra, mas a taxa de juro está na vizinhança do zero e a taxa de inflação não sobe. Os mercados deixaram de funcionar e só serão reactivados na Europa com uma decisão política que saiba gerir o capitalismo em regime da dívida: emissão de títulos de dívida europeus tomada firme pelo Banco Central Europeu e depois colocados no mercado a uma taxa que seja superior à taxa de juro de referência. Nas condições das economias em recuperação, estes serão títulos atractivos para aplicação da poupança existente e contribuirão para reanimar o mercado de capitais e para reabrir os mercados de investimentos. Se a União Europeia não reconhecer esta necessidade, desaparecerá por razões económicas antes de ser dissolvida por impotência da decisão política dos Estados-membros e das instituições comunitárias.

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

 

Este artigo de opinião integra A Mão Visível - Observações sobre as consequências diretas e indiretas das políticas para todos os setores da sociedade e dos efeitos a médio e longo prazo por oposição às realizadas sobre os efeitos imediatos e dirigidas apenas para certos grupos da sociedade.

maovisivel@gmail.com

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