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Luís Pais Antunes - Advogado lpa@plmj.pt 07 de Julho de 2016 às 20:00

Os novos deserdados

É mesmo a profunda desigualdade que continua a agravar-se, arrumando as pessoas em mundos diferentes, ao arrepio da justiça social.

Enquanto escrevo, discute-se no Parlamento o estado da nação, tendo como som de fundo a anunciada decisão da Comissão Europeia que dá início ao processo que pode conduzir à aplicação de sanções a Portugal e Espanha por ausência de medidas eficazes no combate ao défice excessivo. Não andarei longe da verdade se disser que o interesse da grande maioria das pessoas pelo debate e pela decisão é inexistente.

 

Há muitas razões para tal. Desde logo, claro, a vitória da seleção nacional de futebol na noite de quarta-feira e o consequente apuramento para a final do Euro 2016 em que praticamente ninguém acreditava até há meia dúzia de dias. Mas o desinteresse não seria tão diferente quanto isso se, pelo acaso de um ressalto ou de um penálti mal batido, a aventura futebolística já tivesse acabado sem honra, nem glória.

 

Portugal - a exemplo da quase totalidade dos países europeus - está cada vez mais partido e desinteressado da "coisa pública". Não é uma questão de preferências político-partidárias dos eleitores ou de vontades mais federalistas ou nacionalistas. É mesmo a profunda desigualdade que continua a agravar-se, arrumando as pessoas em mundos diferentes, ao arrepio da justiça social.

 

Nunca, como hoje, o princípio da igualdade - que entre nós a Constituição consagra de forma liminar no seu artigo 13.º - teve tanto de formal quanto lhe falta de material. Teoricamente, "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei". Na prática, a lei trata-os de forma diferente. Formalmente, "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual". O dia a dia da vida das pessoas desmente-o categoricamente.

 

Vivemos num mundo em que alguns - sobretudo à esquerda, mas também à direita - enchem a boca com a defesa dos direitos e com o combate à precariedade. Mas que só se preocupa com os direitos de quem já os tem, protegendo os instalados a quem assegura benesses, enquanto fecha a porta aos mais novos e, muitas vezes, mais capazes.

 

Um mundo em que, lado a lado e desempenhando amiúde idênticas funções, uns têm vínculos generosos e menos horas de trabalho e outros trabalham mais, com menos - ou nenhuma - proteção. Um mundo em que alguns podem viver a baixo custo no centro das cidades "porque já lá estavam" ou porque são subsidiados, enquanto outros são chutados para as periferias e passam horas a fio em filas de trânsito. Um mundo em que o dinheiro dos impostos chega para alimentar um Estado pesado e assegurar os direitos dos protegidos, mas pouco faz pelos outros. Um mundo sempre pronto a defender e a restabelecer "direitos adquiridos", mas que pouco ou nada quer saber da aquisição de direitos por parte de quem não os tem. Um mundo preocupado com o pagamento das pensões de reforma dos atuais beneficiários, mas que persiste em ignorar as nuvens que se acumulam sobre o futuro daqueles que hoje, maioritariamente, as financiam.

 

Há hoje um crescente exército de deserdados que, dia após dia, vai deixando de acreditar nas promessas de uma igualdade que não existe. Com mais ou menos debate, com mais ou menos sanções, não é deles, nem para eles, que estão a falar. Mas quando a conta aparecer para pagar serão eles os primeiros a ouvir que a igualdade vai ter de esperar mais uma vez...

 

Advogado

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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