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O imbecil

Deixem-me contar uma historieta pessoal reveladora do quadro mental da nossa elite.

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Deixem-me contar uma historieta pessoal reveladora do quadro mental da nossa elite. Em finais dos anos 90, recebi um convite para apresentar uma proposta de obra de arte para um novo equipamento cultural de New Jersey, perto de Nova Iorque. Tratava-se de um edifício, um Centro de Concertos, financiado pela comunidade local como frequentemente sucede nos Estados Unidos. Os promotores americanos pretendiam que o projeto tivesse uma forte ligação à "Little Portugal" de Ferry Street. Zona de Newark que mais parece um parque temático sobre a portugalidade com os seus cafés, onde não faltam os matraquilhos e respetiva parafernália dos nossos principais clubes de futebol.


A minha proposta acabou por ser a escolhida por um júri misto de portugueses e americanos.
Meses depois recebo um telefonema do gabinete do então primeiro-ministro, António Guterres, a convidar-me para ir na sua comitiva para a inauguração do Centro. Foi-me dito que tinham dificuldades financeiras, não as têm sempre?, e por isso paguei do meu bolso os bilhetes de avião, meu e da minha mulher, e a estada num pequeno hotel junto a Washington Square, onde habitualmente ficamos quando vamos a Nova Iorque. Ou seja, não fomos realmente na comitiva que, ao que soube depois, encheu um avião com homens de negócios, políticos e jornalistas. Raramente há lugar para os artistas. Enfim.


No dia e hora combinados, fomos ter ao ponto de encontro, um hotel em Central Park, para seguirmos em caravana para o evento. Um assessor de Guterres indicou-nos então uma limousine preta, daquelas esticadas, enormes, entretanto tornadas caricatas pela evolução do gosto dos ricos que agora preferem os SUV's. Lá dentro estava Jardim Gonçalves e uma mulher.

 

Cumprimentámo-nos e sentámo-nos. Não passou um minuto e banqueiro e acompanhante saem da limousine. Não percebemos. Mais algum tempo e aparece o tal assessor a dizer que tinha havido um erro e não podíamos ir naquele carro. Cá fora confidencia que o banqueiro não queria companhia. Queria a limousine só para ele.


Na altura pensei que só uma mente muito débil podia dar importância a este tipo de coisas. Conhecida a história recente, confirma-se que este mesmo homem, que se tinha em tão grande importância, afinal nunca passou de um pequeno trafulha como tantos.


Mais do que a historieta pessoal, fica o retrato da nossa elite. Gente que imagina ter importância por obrigar os outros a darem-lhe importância. Gente que não atende telefones, que está sempre em reunião, que se furta sistematicamente à comunicação, como se esse afastamento pudesse conferir uma qualquer autoridade. Gente que exige ser tratada por Senhor Doutor, que demanda salamaleques de toda a espécie, prioridades, tratamentos VIP. No fundo, uma elite de tipo feudal num tempo acelerado que exige conhecimento e interação constante com os outros, por mais insignificantes que possam parecer. Raramente as boas ideias vêm dos ricos e poderosos. Nascem da necessidade e dinâmica dos que estão em baixo. E quem não percebe isto está condenado ao obsoletismo.


Muito se fala de reformas. Sobretudo administrativas, das leis e procedimentos. Mas falta uma reforma profunda da mentalidade das elites. O mundo mudou muito, a competição é feroz. O tipo de comportamentos habituais em Portugal são um entrave objetivo ao desenvolvimento. Não só no meio empresarial ou nas elites económicas, mas igualmente no universo da política. Ainda recentemente foi notícia a crítica de uma militante socialista espanhola ao fausto dos encontros partidários e ao ambiente fortemente hierarquizado que aí se vive. A ausência de interação condiciona o pensamento. Não se pode ter boas ideias quando se funciona em circuito fechado.


O atraso de Portugal tem muitas origens. Das quais 50 anos de fascismo nunca são de desprezar. A elite resiste a evoluir, a fazer parte do mundo, encerrando-se nas redomas protegidas das famílias e dos clubes privados. São o peso morto da nossa sociedade. Aquele que nos puxa para baixo, para um tempo deplorável que já não existe. É por isso preciso continuar a cantar-lhes a Grândola Vila Morena e interromper os seus discursos serôdios. Até que aprendam.

 

 

Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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