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Uma verdade inconveniente

Voltou a ser notícia o caso de um padre católico que abusava de crianças entregues à sua guarda. O assunto meteu polícia e gerou a indignação e perplexidade habituais. A Igreja também não surpreendeu. Insiste que se trata de um caso isolado. No entanto, tantos e tantos casos isolados permitem pensar que, pelo contrário, o problema configura um padrão de comportamento bastante generalizado.

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Nos últimos anos, revelações do mesmo género têm surgido em múltiplos países. Dos Estados Unidos à Austrália, passando pela Irlanda, Canadá, Bélgica, Áustria, Argentina e outros, os escândalos sucedem-se quase sempre relatando práticas continuadas, por vezes durante décadas, frequentemente com a conivência ou, pelo menos, ocultação das instâncias superiores. 

 

Para além da questão da pedofilia, sexo de um adulto com menores de idade, existe uma prática de relacionamentos sexuais perversos já que envolvem padres e aqueles que religiosa e psicologicamente são seus dependentes. Não se trata, aliás, de um tema contemporâneo. Basta pensar n' "O Crime do Padre Amaro", de Eça de Queiroz que, em finais do século 19, descrevia com talento o assunto provocando a indignação da Igreja.

 

Na origem desta questão está o conceito de celibato, ou seja, abstinência sexual dos padres de forma a poderem dedicar-se por inteiro à sua fé. É uma ideia compreensível na teoria, mas que na prática configura uma situação que vai contra a natureza humana. O nosso corpo é determinado por genes que nos levam a ter desejo sexual, sobretudo nas idades mais jovens. Em particular nos homens, este ímpeto é muito forte pois dele depende a proliferação da espécie. A generalização da masturbação masculina ou, como efeito colateral, o recurso à prostituição ou à pornografia, são uma evidência que não se pode ignorar. Já nas mulheres existe toda uma literatura científica que dá conta dos distúrbios provocados pela abstinência sexual. Pelo menos desde Freud que tudo isto é sobejamente conhecido.

 

Temos, assim, a criação de ambientes sombrios propícios aos abusos. Nos seminários e variadas instituições, vitimizando sobretudo crianças, e na atividade religiosa corrente com inúmeros casos de violação de mulheres pelos padres. Sendo que a vasta maioria destes eventos, pela sua natureza tida por pecaminosa pelos próprios, fica no segredo dos confessionários.

 

A deferência que genericamente se presta às matérias religiosas não tem permitido abordar esta temática de forma transparente ou, pelo menos, similar à que sucede na vida corrente. Existe não só um manto de obscuridade, como sobretudo o medo de incomodar uma instituição que é tida como fundamental para o funcionamento da sociedade. A Igreja, no nosso caso a católica, é na verdade um poder à parte. Que tem regras próprias, muito secretismo e frequentemente um comportamento que não se tolera às organizações e pessoas comuns. Para além das regalias e prerrogativas que não se concede a mais ninguém. Enfim, a sociedade laica continua por cumprir.

 

Tudo isto, que é claro, não parece contudo estar a conduzir-nos a um meio ambiente mais aberto e racional. Em tempos de crise cresce o recurso ao sobrenatural como se este pudesse, de alguma forma mágica, resolver os dramas do quotidiano. Daí que se assista a um incremento na adesão às várias propostas religiosas, cada vez mais numerosas e fantasiosas, e aumente o fundamentalismo, enquanto recusa radical de qualquer abordagem científica. Veja-se o caso do criacionismo ou da refutação constante de Darwin e da sua teoria da evolução das espécies.

 

Não sendo crente, compreendo contudo a necessidade de muitas pessoas em se agarrarem a uma qualquer explicação sobrenatural que lhes garanta um destino para depois da morte. Trata-se, provavelmente, de um "bug" genético, pois está presente na maioria das culturas humanas. Mas, sinceramente, não vejo como pode ser útil para a construção da vida que nos coube viver e, pelo contrário, como qualquer observador isento pode constatar, é fonte de muitos dos problemas que afetam o nosso mundo e gerador de muita infelicidade terrena.

 

Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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