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Estevais

É o nome da aldeia de Trás-os-Montes onde, pelas contas do próprio, o escritor J. Rentes de Carvalho foi gerado e onde fixou, a meias com Amsterdão, a sua residência.

É também o cenário de boa parte do seu romance "Ernestina" e, provavelmente, a fonte da aldeia de "Rebate", um outro romance tão extraordinário que talvez não merecesse ser tocado por aqui.

 

A escrita de Rentes de Carvalho suscitou-me um efeito raramente repetido ao longo da vida. Começamos por um livro que parece ter sido escrito para o lermos (nunca são, mas a vaidade tem destas coisas). E depois, o seguinte também o foi. E mais um, até que se torna difícil ler o quer que seja enquanto não acabam todas as letras que o escritor escreveu para nós.

 

Das últimas vezes que me aconteceu - Seth, Laxness, Andric - cheguei ao fim com a sensação de que já estava ver a genialidade só para não perder a razão da primeira sensação. Com JRC, foi o contrário. Fui sempre gostando mais.

 

Nestas férias, tentei, claro, outras leituras. Correram mal. Não o ler (ainda me faltavam dois ou três) estava a incomodar-me…

 

Tal como JRC, leio caoticamente, sem um "plano" para chegar à erudição. Por puro prazer. Não é desculpa, mas é a razão pela qual até à polémica que "A Flor e Foice" arranjou com a primeira edição, nos quarenta anos de abril, Rentes era só um nome, não uma leitura.

 

Depois, vindimei os romances quase todos de seguida. E agora, novamente de seguida, os "diários": o da passagem do século, o da "chegada" aos sessenta e as recordações e fantasias do "Mazagran".

 

A soberba, lá está, às vezes cega. Cheguei a achar-me parecido com ele… Pois se concordava com tudo o que lia, pois se me pôs a rir e chorar, pois se eu também penso assim e acho que conheço aquilo tudo… Até que, num dos diários, aparece uma reflexão sobre gente como eu que gasta tinta dos jornais e, pumba, lá vim aos trambolhões da montanha abaixo. Quase deixei de querer, sapateiro, subir da chinela para escrever linhas tão pobrezinhas como estas.

 

Felizmente passa. E na vaidade que sobra, resta uma característica em que gostava de ser assim e, vaidoso, acho que para lá caminho. Na falta de paciência para a conversa de chacha, para o convívio de circunstância. Tal como a ele, bastam-me cada vez menos pessoas.

 

A outra que estou a tentar aperfeiçoar é, como dele dizem os críticos, esse absoluto compromisso com a verdade. O homem até pode, às vezes, poucas, não sei… estar errado, mas leva tudo rente.

 

Que maravilha num tempo em que, de tantas formas, se multiplicam pantomineiros… E que espelho implacável, para quem quer levar uma vida digna, são as linhas destes livros.

 

Estou na idade abaixo da qual muito do que descreve já não é empiricamente conhecido. A aldeia, o seu cheiro da palha e dos bois, o sabor do vinho de pipa, o entusiasmo do dia em que o mosto vai ao alambique, a água da ribeira bebida na pucara de barro são coisas que a distância podia dourar. Que eu, de as ter vivido criança, dourava. Mas Rentes de Carvalho sabe mais. Sabe da mentira, da inveja, da luxuria e da bebedeira. Sabe da pobreza. Ao contrário dos patetas criados no bem bom da burguesia que passam a vida a encher a boca para perorar sobre privações que nunca cheiraram…

 

Há uns dias, de partida de Estevais, JRC deu um entrevista. A sabedoria do costume. O desinteresse pela política portuguesa que faz que alterna, mas acaba sempre a obedecer. A satisfação pela vida na Holanda. Um país " onde as pessoas pagam os impostos e estão convencidas que o Estado não está ali para os fazer sofrer, mas para fazer o melhor possível"…

 

Em suma, para este homem bom - e experimentado - um Estado com garantia constitucional, parlamentar e liberal, com alternância democrática, na União Europeia, é o menos mau que a humanidade lhe mostrou.

 

E eu, que venho de férias, agarro--me a isso para, ao contrário dele, achar que neste meio caminho entre Estevais e Amsterdão ainda não é tempo de desistir. E agora, vou então reparar na campanha. Parece que já arrancaram os cartazes…

 

Advogado

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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