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02 de Março de 2021 às 18:23

Mudar a História de Portugal? Sim!

Se queremos abandonar o reino da propaganda e abraçar a Ciência temos de aceitar que a História muda e que isso não é antipatriótico mas sim, simplesmente, um facto incontornável da vida.

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O passado é imutável. Não há forma de voltar atrás e alterar aquilo de que nos arrependemos, aquilo que não resultou como pretendíamos, de voltar a viver os nossos momentos de glória como tão bem os cantou Bruce Springsteen. A seta do tempo só tem uma direção, a do passado em direção ao futuro. Inexoravelmente.

 

A História contudo é mutável. É uma ciência social sempre incompleta e sempre parcial. Não é feita de uma vez por todas. Novos elementos surgem, descobrem-se novos documentos, novas técnicas permitem datar melhor os objetos, decifram-se línguas julgadas impenetráveis, outras interpretações emergem, novos ângulos e perspetivas iluminam factos que pareciam apontar numa dada direção. A História está sempre a mudar.

 

A História é também diferente quando vista por diferentes olhos. O 25 de Abril é uma revolução popular aos olhos de um operário e um golpe de estado antipatriota quando analisado por um convicto colonialista. O 1 de Dezembro visto por um português libertou Portugal, mas por um castelhano desmembrou a Coroa espanhola. Viriato é um antepassado português ou espanhol? Ambos o reclamam. O que foram os acontecimentos da Marinha Grande de 1934?

 

A História conta-nos, na maioria das vezes, a perspetiva dos vencedores, dos opressores. Mas os vencidos e oprimidos também têm a sua História. As derrotas também marcam, por isso lembramos Alcácer Quibir e a batalha de Alcântara. Essas batalhas tiveram e têm distinto significado para espanhóis e marroquinos. Quem conhece o grande movimento Negro antirracista da I República que se organizou em Lisboa a partir de 1911? As principais obras de História de Portugal não o mencionam e, contudo, ele existiu, foi vibrante e obteve vários êxitos. Leiam Pereira e Varela.

 

E depois há que saber com quem nos identificámos. Quem queremos perpetuar? Spartakus em luta para se libertar da escravidão ou Crássio o general romano que representava a República Romana que escravizava pessoas? Zumbi ou os esclavagistas portugueses no Brasil? Quem queremos recordar como herói Machado dos Santos, firme na Rotunda, ou os seus adversários monárquicos? A quem queremos erguer uma estátua a Miguel de Vasconcelos ou aos 40 conjurados? Esta é uma discussão importante que nos define como pessoas, como seres morais, como povo.

 

Naturalmente a visão da História que hoje repetimos e que herdamos do regime do Estado Novo não serve uma sociedade aberta, tolerante a e diversa. Ela é uma História que tem como heróis indivíduos como Marcelino da Mata e que classifica Amílcar Cabral como terrorista. Que glorifica Salazar e vilipendia Humberto Delgado. Uma História feita a partir do ponto de vista de um regime que repudiamos.

 

Sim, a História tem de mudar. Sempre assente nos factos que são conhecidos, e cada vez se descobrem mais, mas plural da perspetiva com que são encarados e analisados e não unívoca reproduzindo a visão do Estado Novo.

 

Há que reconhecer que muito do que nos ensinaram ser a nossa História não passava de uma ilusão, desmentida pelos factos, de uma visão parcial, que deixava de fora muitas outras interpretações dos mesmos factos, e propagandística elaborada com fins políticos hoje muito claros. Uma História estranha aos olhos modernos, cheia de heróis míticos, de características sobre-humanas, e não explicada pelo movimento e evolução das tecnologias e dos grupos sociais.

 

Reconhecer essa realidade pode ser doloroso. Pode ser difícil para os mais frágeis de espirito e de convicções. Mas é um primeiro passo para que possamos encarar a História naquilo que ela verdadeiramente é: uma ciência social sempre em evolução e mutação. É que se queremos abandonar o reino da propaganda e abraçar a Ciência temos de aceitar que a História muda e que isso não é antipatriótico mas sim, simplesmente, um facto incontornável da vida.

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