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03 de Dezembro de 2012 às 23:30

O Sr. Nelinho ao poder

"As crianças vão ter de emigrar, vai ter de ser", sentenciou sem se comover o Sr. Nelinho. "Emigrar, como?", fez o Francisco, que começava a sentir-se vagamente ameaçado. "Vão para casa de uns avós ou de uns tios. Há que ter paciência."

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O Sr. Nelinho entrou inesperadamente na vida do meu amigo Francisco quando ele se decidiu a adquirir uma casa espaçosa, mas algo antiga, no intuito de a recuperar, introduzindo-lhe de passagem múltiplos melhoramentos. Chegou-lhe o empreiteiro muito recomendado como pessoa despachada e empreendedora, sempre com a cabeça a fervilhar de ideias práticas e acolitado por um punhado de aplicados ajudantes.


O Sr. Nelinho compareceu no dia acordado – não exactamente à hora, mas já se sabe como essas coisas são – acompanhado do minúsculo Sr. Batata, este último munido de um bloco de apontamentos que não parou de aplicadamente rabiscar com o lápis que volta e meia sacava detrás da orelha. Após os algo bruscos cumprimentos da praxe, percorreu em passo rápido a casa, mirando tudo de cima abaixo com aquele olhar entre o atento e o distraído que só o verdadeiro perito sabe aplicar ao objecto da sua observação. O meu amigo tentava ir à frente, explicando o que pretendia, mas o Sr. Nelinho impôs-lhe o percurso e o ritmo da inspecção, sem parecer interessar-se demasiado pelo que ouvia, como se fosse supérfluo o que lhe pudessem acrescentar. "Parece que apanha tudo no ar…", maravilhou-se o Francisco.

"Pois, sim senhor, temos aqui uma bela obra." "E vai ficar muito cara?" "Aqui o Batata, que é bom em contas, tomou nota de tudo e amanhã tem cá o relatóriozinho." Fugidia bacalhauzada de despedida e já Nelinho e Batata se enfiavam sem mais conversas numa carrinha carregada de tralha e seguiam à sua vida pela rua fora.

O orçamento nem pareceu caro para tanta tarefa. "Somos um grupo pequenino, mas muito unido e desenrascado." "Quando começam?" "Isso, agora, deixa cá ver…." Tardaram mais de duas semanas, mas, quando apareceram, derramaram por toda a parte uma profusão de materiais, tábuas, varões, ferramentas, baldes de tinta e caixotes de papelão de todos os tamanhos e feitios. Aquilo ficou de imediato em estado de sítio e as tropas de ocupação lançaram sem mais demoras mãos à obra. Ao regressar nesse dia do trabalho, o Francisco espantou-se com a dispersão de esforços: "Não seria melhor fazer isto por partes?" "Nós fazemos assim. É o nosso método", foi a resposta.

Prontamente se constatou que o "método" do Sr. Nelinho era incompatível com o dia-a-dia de uma família organizada. A mulher-a-dias não conseguia lavar a roupa e passar a ferro no meio daquela confusão. Tornou-se impossível cozinhar no meio do caos. A mesa da sala de jantar estava sempre coberta de pincéis e esmaltes. Nas banheiras havia baldes de cola e tábuas partidas. Circular nos quartos de dormir era um exercício perigoso, principalmente à noite. Pior que tudo, os miúdos não conseguiam, no meio de tanta barulheira e desarrumação, fazer os trabalhos de casa.

"As crianças vão ter de emigrar, vai ter de ser", sentenciou sem se comover o Sr. Nelinho. "Emigrar, como?", fez o Francisco, que começava a sentir-se vagamente ameaçado. "Vão para casa de uns avós ou de uns tios. Há que ter paciência." Os miúdos lá abalaram, a breve trecho seguidos pela mãe, que concluiu não estar ali a fazer nada. Quanto ao Francisco, lá ia resistindo, embora cada vez mais confuso, porque via passar os dias, muita agitação na casa, muito camartelo, muita demolição, muito fio eléctrico arrancado, muito soalho esventrado e muita parede descascada, mas pouco ou nenhum progresso real do trabalho.

Cada vez que interpelava directamente o Sr. Nelinho, não tinha direito a mais que um sorriso trocista e um comentário enigmático: "Não se apoquente, porque eu, o Batata e os meus ajudantes sabemos muito bem o que estamos a fazer…" O pior foi quando, dias depois, o Nelinho lhe comunicou, com ar de quem não admite discussões, que, estando a casa em muito pior condição do que lhe havia sido transmitido, tornava-se indispensável rever urgentemente o memorando e aumentar substancialmente o orçamento. "O memorando? Qual memorando?" "Ora essa, o relatório do Batata que o senhor aprovou e assinou, não se faça de esquecido!" "E porque é que a obra há-de ficar mais cara, não me diz?" "O edifício não presta, não se pode fazer nada de jeito com ele. Há um problema de fundações. Vai ser preciso demolir a trave mestra e, isso, meu caro amigo, é quase como fazer um edifício novo."

O Francisco ficou de todas as cores. Sem se comover, o Nelinho continuou, perante o assentimento do Batata e dos restantes paspalhos que o haviam rodeado: "Até já trouxe hoje comigo o meu advogado, o Dr. Faísca, para fazermos um contrato à séria a ver se pomos ordem nesta enrascada em que o Sr. Engenheiro nos meteu". Com a irritação, o Francisco ainda nem dera pela presença do advogado. Fora de si, fulminou-o: "Fora, fora daqui de uma vez por todas! Fora com o Batata, fora com o Faísca e todas as vossas cambulhadas." O Nelinho tentou responder-lhe – "não perca a cabeça, que a mulher aqui do Coradinho é polícia e isto ainda pode acabar mal!" –, mas o Francisco estava definitivamente decidido a expulsar aquela tropa fandanga e, com energia sobre-humana, empurrou-a sem cerimónia porta fora.

"E agora?", perguntei-lhe quando o encontrei dias depois. "Agora, tenho uma dívida gigantesca ao banco, a casa está numa ruína (mil vezes pior do que quando a comprei), ninguém pode viver lá, os miúdos continuam com os avós e a Leonor ameaçou-me com o divórcio. Em compensação, estou livre."

"Mas, afinal, quem é que te recomendou o Nelinho?" "Foi o Ângelo, sabes quem é?" "O amigo do Ilídio? E ele meteu-te em casa esse animal?" "Se eu tivesse sabido…, mas só agora descobri que o Nelinho é afilhado do Ilídio!"

Director-geral da Ology e docente universitário
jpcastro@ology.pt

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