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O patinho feio do PRR

Sem preconceitos nem paternalismos, devíamos falar na invasão dos tuc-tucs, nos souvenirs Made in China, nos menus com preços de turista e em tudo aquilo que nos envergonha – para mudar. Pensar com seriedade na oferta que temos e na que queremos ter.

A última versão do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) lembra-me a cena do Velho Testamento de Mel Brooks (Uma Louca História do Mundo), em que Moisés aparece ao povo de Israel com três placas de mandamentos, para anunciar os 15 Mandamentos sagrados. Isto, claro, até se desequilibrar, uma das placas cair e o Profeta ser obrigado a apresentar... os 10 Mandamentos. A piada – não é mais do que isso – aplica-se como uma luva a este PRR, que não tem absolutamente nada de mal a não ser o que lhe falta. E o que lhe falta é tão gritante que parece ter sido esquecido na impressora do Governo: o turismo.

Não há grande desculpa. Percebo o argumento apresentado aos agentes da cultura (os únicos que souberam erguer a voz neste debate público) de que o documento está centrado nos meios e não nos fins. E por isso não se pode dirigir a nenhuma actividade em particular, mas a todas em geral. Percebo, repito, porque em teoria faz sentido. Quando falamos de digitalização, requalificação, preocupações climáticas ou de encurtar distâncias geográficas, falamos de grandes reformas estruturais e mudanças de paradigma, que só funcionam se forem transversais e afectarem todos os sectores por igual. Em teoria.

Só que o turismo não é um sector qualquer. Em teoria e na prática. Já tem um peso de chumbo no PIB nacional (15%), lidera as exportações de serviços (mais de 50%), e é responsável pelo crescimento de actividades tão importantes como o imobiliário, o vinho, a restauração, o comércio e até a própria reputação nacional. Veja-se a tempestade que aconteceu na TAP, por causa de um único ano sem turismo, e imagine-se o quão sistémico este tema é.

Os mais cépticos, que hoje em dia dominam o debate público, acham que tudo isto é passageiro. Que a própria pandemia provou como estes factos e estatísticas podem ser levados pelo vento do dia para a noite. Empresas a sério (não dizem, mas pensam) são as Autoeuropa desta vida, de tijolo e cimento, que não se deixam cá abalar por um vírus. O resto é para crianças se entreterem. É mais ou menos como aplicar à economia a lógica dos pais que acham que os filhos devem ser médicos ou advogados, porque isso é que são profissões para a vida. Em 2021.

Aceitar esta linha, mesmo sem querer, é ignorar que o turismo tem muito mais futuro do que presente. Tem um potencial óbvio de muitos mais anos de prosperidade, com efeitos de contaminação positiva a toda a economia. Isto, claro, se soubermos dar-lhe o lugar de honra que merece na estratégia nacional. A começar pelos grandes documentos, como a Visão Estratégica de António Costa Silva ou este PRR.

E se da primeira vez ainda podíamos olhar para o lado e disfarçar, dado o lado pessoal das opiniões, desta vez é impossível. Num documento de 147 páginas que define o destino de 14 mil milhões de euros, em 19 áreas, através de 36 reformas e 77 investimentos (cito os autores), há apenas cinco referências ao turismo. Cinco: uma relacionada com o impacto na habitação, duas ligadas a temas de gestão hídrica e duas associadas a processos de digitalização. Por direito próprio, portanto, nada. Só para efeitos de comparação, o hidrogénio tem um capítulo próprio e 26 referências. Porque, lá está, é estratégico.

É evidente que quem estiver no turismo poderá concorrer a todas as medidas englobadas pelo Plano que façam sentido para a sua empresa. Mas sempre em pé de igualdade com as restantes indústrias e sectores económicos, independentemente da importância estratégica de cada um deles e da forma como foram afectados pela pandemia. E aqui perde-se a razão de vista.

Os partidos da oposição acharam o mesmo? Protestaram, revoltaram-se? Nenhum. Em linha com o debate rasteirinho que se normalizou desde que a esquerda se partiu e a direita se radicalizou, não ouvimos nada de útil, nada de construtivo.

Há pelo menos duas conclusões a tirar disto tudo. Uma, é que o turismo é oficialmente o patinho feio do debate público. Um sector com uma influência política inversamente proporcional ao que representa na economia, e que por razões inexplicáveis continua condenado ao preconceito de ser uma área frívola e volátil, que ninguém mostra interesse em debater seriamente.

A segunda, mais difícil de aceitar, é que continuamos a não ter coragem de aceitar como maior elemento diferenciador do nosso país – em linguagem empresarial, o nosso “Unique Selling Point”) – o que a Natureza nos deu, o tempo e a paisagem. Quando esquecemos isso e escolhemos como prioridades os mesmos objectivos que podiam ser defendidos pela Lituânia ou pela Eslováquia, alguma coisa se perdeu no caminho.

Como sociedade, ligados ou não ao turismo, devíamos forçar esta tomada de consciência. Usar os fóruns ao nosso alcance para discutir a área que mais riqueza e reconhecimento nos pode trazer nos próximos anos, e que mais emprego pode criar.

Sem preconceitos nem paternalismos, devíamos falar na invasão dos tuc-tucs, nos souvenirs Made in China, nos menus com preços de turista e em tudo aquilo que nos envergonha – para mudar. Pensar com seriedade na oferta que temos e na que queremos ter. Na sustentabilidade ambiental dos nossos produtos e na sustentabilidade social dos nossos resultados. Na paupérrima formação profissional e académica que temos e na que temos de construir com urgência.

Se o fizermos podemos realisticamente aspirar a dominar esta indústria a nível mundial. Se o ignorarmos, vamos ter a mediocridade do costume. Preferimos ter o patinho feio ou a galinha de ovos de ouro?

 

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