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12 de Agosto de 2014 às 19:45

Passar ao fio da espada

A subestimação das capacidades militares dos jihadistas do "Estado Muçulmano do Iraque e do Levante" (EIIL) obrigou Obama a uma solução de recurso para evitar o colapso das linhas de defesa curdas no Norte do Iraque sob pretexto de intervenção humanitária.

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Após a conquista de Mosul e da maior barragem do Iraque na província de Nínive, o EIIL passou a ameaçar os poços petrolíferos de Kirkuk e a capital curda de Erbil, mas os massacres e perseguições de minorias cristãs, yazidis e turcomenos xiitas, forneceram pretexto a Washington para lançar uma operação à revelia do primeiro-ministro Nuri Al Maliki ainda antes do seu afastamento do governo.

 

Os Estados Unidos, carentes de estratégia para contenção das correntes jihadistas sunitas no Iraque e na Síria, viram-se obrigados a uma intervenção de emergência que legitimasse o fornecimento de equipamentos, munições e informação militar operacional aos "peshmergas" incapazes de fazerem frente ao EIIL.

A entrega de ajuda a civis e bombardeamentos aéreos para dificultar as movimentações em terreno aberto do EIIL dispensavam, por sua vez, acordo prévio com Al Maliki dando tempo aos seus opositores entre os xiitas – designadamente no "Dawa", partido do chefe do governo – para encontrarem uma alternativa aceitável para curdos e sunitas. 

A indigitação de Aidar Al Abadi para formar novo executivo na sequência das eleições de Abril teve, entretanto, anuência do Irão, mas é incerto o que advenha das negociações; mais ainda o que próximos governos em Bagdade consigam preservar a unidade do Estado.

 

O Califado

 

O Califado proclamado a 29 de Junho domina de facto territórios com cerca de seis milhões de habitantes, na maioria sunitas.

 

Sensivelmente um terço da Síria, incluindo os principais poços de petróleo e jazidas de gás, e mais de um quarto do Iraque estão desde Junho sob controlo do EIIL que derrotou demais rivais jihadistas e se confronta presentemente com um dilema estratégico.

 

Os homens de Abu Bakr Al Baghdadi podem concentrar forças para um ataque a Allepo, antes de tentar a conquista de Damasco, ou consolidar posições no Norte do Iraque para através do controlo de Kirkuk aumentarem recursos financeiros e ampliarem recrutamento e municiamento das suas hostes.

 

Consolidada a hegemonia do EIIL entre os sunitas iraquianos não existem de momento rivais detentores de potência militar para disputar os ditames de Abu Bakr, mas um assalto a Bagdade, além de condenar ao massacre final a cada vez mais exígua comunidade de residentes sunitas na capital iraquiana, ultrapassaria a capacidade de atracção étnico-religioso dos jihadistas.

 

Na Síria uma investida contra os alauítas de Bashar Al Assad, tentando remetê-los para os contrafortes costeiros de Latakia, teria de ultrapassar os receios das demais minorias étnico-religiosas e de populações sunitas urbanas arredias ao rigorismo religioso jihadista.   

 

O Califado tenderá a cingir-se às áreas de maioria sunita do actual Iraque e às regiões menos urbanizadas da Síria, tentando controlar pontualmente outros territórios de valia económica e estratégica, como a barragem de Mosul ou os campos petrolíferos de Kirkuk.

 

Obstinados e implacáveis, dados ao mortícinio para maior glória divina, condenados à implosão pelo próprio desvario homicida, os homens do EIIL podem optar ademais por incursões na Jordânia e Arábia Saudita, arriscando o desencadear de intervenções militares estrangeiras.

   

Noite antiquíssima e idêntica

 

O recurso à força por parte de norte-americanos, turcos ou iranianos é capaz de infligir grandes perdas aos jihadistas e desagregar o Califado, que se regenerará em focos de acção terrorista, mas deixará por resolver as questões essenciais de partilha de poder entre grupos étnico-religiosos.

 

Conquistas e massacres de jihadistas sunitas são novo episódio de um drama maior: a convulsão de todos os compromissos e equilíbrios de poder entre minorias étnico-religiosas no Levante desde a derrocada do Império Otomano na sequência da I Guerra Mundial, a colonização judaica e a parceria entre Franklin Roosevelt e Ibn Saud em 1945.

 

A mitigada ajuda de emergência de Obama sob aval humanitário e para estabilizar as linhas de defesa de Erbil não esconde o desnorte ante um descalabro estratégico que toca mais de perto Portugal como parceiro de outras desventuras da NATO.

 

O reforço da potência militar do Irão, incluindo dissuasão ou ameaça nuclear, é uma das possíveis consequências deste ciclo de crises e, em qualquer dos casos, as consequências serão negativas para norte-americanos, mas, também, para chineses ou russos.

 

No imediato, o destino de yazidis ou alauítas é tão certo como uma noite antiquíssima e idêntica: muitos serão passados pelo fio da espada.         

   

Jornalista

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