Opinião
Os despojos do império
Insustentáveis as fronteiras da maior parte dos estados do Médio Oriente só poderão manter-se a custo de reconfigurações internas que obrigam a partilhas do poder e à adopção de regimes com forte pendor federalista.
Por força da guerra, a configuração dos estados saídos da partilha dos despojos do Império Otomano no Médio Oriente no início do século XX está a mudar por mais que as potências europeias, os Estados Unidos e a China façam por ignorar uma tendência inexorável.
A virulência dos ataques de grupos salafistas na Síria e no Iraque demonstram a irredutabilidade de largos segmentos das populações sunitas inconformadas com a subordinação a outros grupos étnico-religiosos.
Na província iraquiana de maioria sunita de Anbar -- adjacente à Síria, Jordânia e Arábia Saudita -- o governo de Bagdade perdeu o controlo das duas principais cidades, Falluja e Ramadi, para forças do "Estado Islâmico do Iraque e do Levante" (EIIL).
O retorno da Jihad
Este movimento jihadista, congregando militantes sobreviventes dos núcleos da "Al Qaeda" que até 2006/2007 prestavam obediência a Bin Laden em terras da Mesopotâmia, tem sido um dos responsáveis pelo aumento da violência no Iraque.
Os picos de violência de 2006/2007 reduziram-se nos anos seguintes, mas dos 3. 238 mortos registados em 2012 pela "Missão de Assistência da ONU para o Iraque" o número de vítimas mortais saltou para 7.818 no final de 2013.
Os combates em curso entre forças tribais, jihadistas do "EIIL" e tropas governamentais são o culminar de meses de tensões numa província em que revoltas contra o novo poder central e ocupantes norte-americanos só esmoreceram em 2008.
Para lá de Anbar o ressentimento aumentou contra o executivo liderado pelo xiita Nuri Al Maliki que tem vindo a acentuar a exclusão política da minoria sunita.
Marcando terreno para as eleições legislativas de Abril Al Maliki, conformado à autonomia das regiões curdas, tem sabotado reivindicações provinciais de sunitas e, em menor escala de xiitas, para maior participação na definição de políticas, autogoverno e partilha das rendas do petróleo que Bagdade procura controlar.
A escalada em Anbar vai a par dos combates na Síria onde o EIIL ataca os jihadistas da "Jahabat al Nusra" ("Frente para a Vitória do Povo Sírio") e se confronta com
grupos nominalmente ligados ao "Exército Livre da Síria", uma frente militarmente ineficaz apoiada pela "Coligação Nacional Síria" onde predominam os "Irmãos Muçulmanos".
Os conflitos entre alas jihadistas e forças conservadores nas fileiras sunitas afastam ainda mais de uma frente anti-alauíta e contra Bashar Al Assad minorias como os cristãos ou os curdos que conseguiram estabelecer redutos autónomos na província de Hasakah no Nordeste.
Paradoxalmente a extracção da Síria pela ONU de um primeiro carregamento de armas químicas para destruição em águas internacionais é claro sinal de que Al Assad
consegue manter o controlo das duas principais cidades, Aleppo e Damasco, e da região costeira de Latakia, praça-forte alauíta.
A guerra civil, após ter provocado 2,3 milhões de refugiados e desalojado no interior do país 6,5 milhões de pessoas, chegou a um impasse a que as diversas potências intervenientes, do Irão à Arábia Saudita, passando pelo Rússia ou Estados Unidos, pesam as consequências do eventual desmembramento do estado sírio.
Fronteiras insustentáveis
A instabilidade que agita o Líbano é um dos factores a impedir o prolongamento por demasiado tempo do actual impasse altamente favorável ao Irão que o usa como factor dissuasor de maiores pressões nas negociações sobre o desmantelamento do seu programa nuclear militar.
Na Síria e no Líbano, os dois estados do Médio Oriente com maior número de grupos étnicos e religiosos em confronto político, assiste-se, tal como no Iraque, ao colapso de arranjos estatais impostos pelo Grã-Bretanha e França após a I Guerra e pelo pacto firmado, posteriormente, entre Franklin Roosevelt e a monarquia saudita.
Insustentáveis as fronteiras da maior parte dos estados do Médio Oriente só poderão manter-se a custo de reconfigurações internas que obrigam a partilhas do poder e à adopção de regimes com forte pendor federalista.
Sucessivas guerras, conduzidas sob bandeiras de nacionalismos panarabistas, persas, curdos, exclusivismos religiosos sunitas e xiitas, são parte de um processo de reestruturação de um ordenamento político que vigorou desde os anos 20, absorvendo o desenvolvimentismo laicista do kemalismo na Turquia e resistindo à implantação do estado judaico.
A tensão no Egipto, incapaz de compatibilizar projectos de desenvolvimento agregadores sem tutela militar ou dos "Irmãos Muçulmanos", e no Irão, apostado na hegemonização do Golfo Pérsico, são outros dois factores a complicar a arrastada agonia de uma paz imposta após a guerra que iria acabar com todas as guerras.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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