Opinião
Os genocidas do Facebook
As Forças Armadas de Myanmar perderam um dos seus principais instrumentos de propaganda após o Facebook remover contas de militares, políticos e entidades oficiais acusados de actos de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade por investigadores da ONU.
As contas de Facebook e Instagram contavam cerca de 12 milhões de seguidores, segundo a empresa californiana, que, através desta interdição inédita, pretende dar resposta a críticas insistentes sobre a utilização de redes sociais para campanhas de ódio étnico, religioso e político.
Em Myanmar, tal como na Tailândia, extremistas budistas com conivência de instâncias governamentais promovem sistematicamente propaganda antimuçulmana, aproveitando a forte penetração da rede social Facebook, que surge frequentemente, à semelhança de outros países do Sudeste Asiático, como fonte essencial de informação e mobilização.
Ahok e outros
Na Indonésia, por sua vez, fundamentalistas islamitas mostram-se particularmente activos em campanhas no Facebook tendo, por exemplo, contribuído decisivamente para impedir, em 2017, a reeleição de Ahok, cristão de origem chinesa, como governador de Jacarta e sua posterior condenação a dois anos de prisão por blasfémia e incitamento à violência.
Uma porta-voz da empresa de Melon Park, Ruchika Budhraja, afirmou, ainda assim, que Myanmar é caso "deveras único" devido à relevância local de Facebook como meio privilegiado de informação para os seus 54 milhões de habitantes.
O encerramento de duas dezenas de contas seria justificado pelas graves acusações divulgadas pela Missão Independente de Investigação do Conselho de Direitos Humanos da ONU na segunda-feira quanto a perseguições à minoria rohingya no estado de Rakhine, no Noroeste de Myanmar, que levaram no ano passado ao êxodo de cerca de 800 mil muçulmanos.
O argumento do cunho excepcional da utilização de Facebook para propaganda de ódio em Myanmar é falacioso, mas dado que os investigadores das Nações Unidas identificaram nominalmente os seis principais suspeitos de genocídio, a começar por Min Aung Hlaing, comandante-chefe das forças de segurança e militares, o Tatmadaw, surgiu uma oportunidade para a multinacional de Mark Zuckerberg marcar posição.
À imagem de outras redes sociais, como a chinesa Alibaba, o Facebook confronta-se com sérias dificuldades para gerir acesso a mercados tutelados por governos ditatoriais, maximizar modelos de negócio assentes na comercialização de dados pessoais ou neutralizar usos controversos, em especial propaganda política e religiosa.
A desgraça dos rohingya
As controvérsias sobre a sorte dos rohingya têm muito para dar porque a China vetará no Conselho de Segurança iniciativas para um julgamento no Tribunal Penal Internacional e mesmo que a Assembleia Geral da ONU opte por instituir um Tribunal Especial - à semelhança dos tribunais criados para o Ruanda e Ex-Jugoslávia - será essencial a cooperação das autoridades de Myanmar.
É, pois, ingrata a missão da suíça Christine Schraner Burgner, enviada especial de António Guterres para Myanmar, que tenta negociar condições para o retorno dos rohingya refugiados no Bangladesh.
Privados da nacionalidade birmanesa em 1982, cerca de milhão e meio de rohingya de Rakhine, a maioria dos muçulmanos de Myanmar que não ultrapassam 3% ou 4 % da população do país, colhem escassas simpatias entre os budistas banar (birmaneses - 70% das gentes da velha Birmânia) e de pouco valem às aspirações independentistas ou, no mínimo federalistas, de outras minorias budistas ou cristãs como os Kachin, Karen e Shan.
Aung San Suu Kyi, mulher sacrificada desde 1988 em prol dos direitos humanos e da democracia, Nobel da Paz em 1991, líder governamental desde 2016 sob tutela militar, perdeu-se, entretanto, ao negar e calar a extrema violência que se abateu sobre os muçulmanos de Rakhine.
O relativo isolamento diplomático de Myanmar, muito dependente dos investimentos da China - apostada em criar uma zona económica especial no porto de Kyaukpyu para aceder ao Índico no estado de Rakhine -, facilitou, desde logo, a estigmatização dos seus genocidas na gestão empresarial das redes sociais.
Nos tempos que correm, ser corrido do Facebook é, contudo, um risco de consequências políticas imprevisíveis.
Jornalista