Opinião
O cisma cristão em Havana
Realçar o papel de interlocutor do Vaticano para se impor no Santo e Grande Concílio Pan-Ortodoxo em Junho é um dos principais objectivos do patriarca Cirilo no encontro com o Papa em Havana.
A perseguição aos cristãos será uma das questões principais a abordar por Cirilo e Francisco e a convergência entre o patriarca de Moscovo e o Papa coincide com os interesses do Kremlin.
Havana consagra ao mais alto nível os contactos iniciados na década de 1960 entre a Igreja Ortodoxa Russa e o Vaticano marcados por eventos inesperados, caso da morte do metropolita Nikodim em 1978 numa audiência com o recém-eleito João Paulo I, e polémicas sobre tutelas religiosas e direito de evangelização.
A longa viagem até Creta
Cirilo chega atrasado ao diálogo para uma reconciliação entre ortodoxos e católicos aberto pelo encontro em Jerusalém, em 1964, entre o patriarca ecuménico de Constantinopla Atenágoras I e Paulo VI.
Uma tradição vivaz surgida após a conquista de Constantinopla em 1453 pelos otomanos ganhou corpo entre os clérigos da Rus (actual Rússia e Ucrânia, cristianizada em 988): o mito da Terceira Roma.
Moscovo seria a sucessora de Roma, usurpada por heréticos (na linha do Cisma do Oriente de 1054), e de Constantinopla, arrebatada por muçulmanos.
O patriarcado de Moscovo, estabelecido em 1589, ganhou ambições teocráticas com Nikon - cujas reformas levaram a um cisma ainda presente com a fé dos chamados "velhos crentes" -, mas acabou abolido em 1721 pelo czar Pedro I.
Sem autonomia paroquial, serventuária do poder, a ortodoxia russa apesar da influência a partir do final do século XVIII do culto do ascetismo dos eremitas-guias espirituais - imortalizado por Dostoievski nos "Irmãos Karamazov" na personagem do "starets" Zosima - e da renascença religiosa do início do século XX, quedou aquém de qualquer esperança de liderança espiritual.
Restaurado em 1917, hostilizado e manipulado pelos sucessores de Lenin, o patriarcado e a ortodoxia renasceram das cinzas nos anos 1990 com a queda do comunismo.
Igreja e Estado
Cirilo é, desde 2009, ideólogo do poder do Estado vivificador da nação em harmonia com a Igreja e encontrou em Putin o líder ideal.
A Rússia conta com dois terços dos 250 milhões de crentes ortodoxos, mas a influência do patriarcado de Moscovo claudica ante a sua subordinação a interesses de Estado e à primazia de honra do patriarca ecuménico de Constantinopla Bartolomeu I que desde a entronização em 1991 se tem empenhado no diálogo religioso e em defesa do ambiente.
O Concílio de Creta é o mais abrangente desde os sete Concílios Ecuménicos do primeiro milénio e visa superar em importância outros encontros cimeiros da tradição ortodoxa realizados até ao Concílio de Jerusalém de 1672.
A missão da Ortodoxia no mundo contemporâneo e as relações das igrejas autocéfalas ortodoxas com demais confissões cristãs constam da agenda.
A convergência
O ecumenismo é caro a Francisco e a abertura à Rússia, na sequência do estabelecimento em 2009 de relações diplomáticas, e também à China, uma das causas que acalenta.
Putin encontrou pontos de entendimento com Francisco na visita em Junho ao Vaticano, neutralizando eventuais críticas quanto à Ucrânia e Síria, e o Papa reiterou nas vésperas do Ano do Macaco admiração pela civilização chinesa.
Cirilo, por seu turno, considerou a intervenção militar russa na Síria uma "decisão responsável" capaz de contribuir para "a paz e a justiça", converge com Francisco na condenação do alegado relativismo moral do Ocidente, em questões de moral sexual, na exclusão das mulheres do clero e teme igualmente influências perniciosas de evangélicos ou Testemunhas de Jeová.
A discórdia
O estatuto da Igreja Greco-Católica da Ucrânia - mais de 5 milhões de fiéis, a maior das 23 igrejas de rito oriental em comunhão plena com Roma - é causa de profunda discórdia, considerando o patriarcado de Moscovo tratar-se de usurpação católica no seu território canónico.
Apesar de o Vaticano evitar conceder o título de patriarca ao arcebispo Sviatoslav Shevtchuk, eleito em 2011, a hostilidade doutrinal e política agravou-se na sequência da invasão russa da Ucrânia em 2014 com os chamados crentes "uniatas" a resistirem à ofensiva do Kremlin e de separatistas russófonos.
O proselitismo católico na Rússia, por outro lado, abrandou significativamente após a vaga de conversões da década de 1990, rondando o número de fiéis de Roma os 770 mil, nas estimativas do Vaticano, ou menos de 200 mil, segundo inquéritos diversos.
Ainda que formalmente a Rússia reconheça a liberdade religiosa não é atribuído ao catolicismo o estatuto de privilégio da Igreja Ortodoxa e outras religiões tradicionais como a muçulmana, a judaica ou budista gozam de favores do estado negados aos católicos.
Em Cuba, Francisco e Cirilo irão dar uns alguns passos, sem ultrapassarem querelas canónicas, numa longa e tortuosa caminhada.
Jornalista