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Opinião
05 de Junho de 2013 às 00:01

Erdogan e os riscos da prepotência

A pacificação do sudeste curdo está, contudo, muito dependente do evoluir da situação na Síria, no Iraque e no Irão que apresentam grandes riscos para política de projecção alargada de influência e protecção de interesses turcos.

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A acentuada prepotência de Recep Erdogan transformou o protesto contra um projecto de renovação urbana de Istambul numa vaga de contestação antigovernamental na maioria das principais cidades da Turquia. 


O reoordenamento da praça Taksim – local associado ao secularismo da revolução de Kemal Ataturk – implicava não só a destruição de um pequeno parque, mas, também, a construção de uma mesquita.

Renovar Taksim, tal como construir o maior aeroporto do mundo ou uma terceira ponte sobre o Bósforo na antiga capital dos sultões, simboliza para o primeiro-ministro o triunfo da renovação da Turquia recuperando os valores do Islão e a grandeza da era otomana.

A ponte em construção sobre o Bósforo leva o nome de Sultão Selim I, célebre pela sua conquista do Egipto no início do século XVI e as guerras contra os xiitas azeris e persas e os alevi.

Para a minoria alevi – 15% a 20% da população praticante de crenças e rituais marcados pelo xiismo e tidos por anti-islâmicos por grande parte dos sunitas – o baptismo da nova ponte é uma afronta gratuita que se vem juntar à relutância do poder em eliminar as discriminações que a atingem.

Após uma década no poder o "Partido da Justiça e Desenvolvimento" (PJD) vem impondo crescentemente normas tidas por islamitas que são sentidas como uma agressão e violação dos princípios da república fundada em 1923 por Ataturk entre as populações secularizadas, sobretudo urbanas.

Em Taksim, coincidiram a desproporcionada intervenção policial, a violência verbal de Erdogan contra manifestantes e todos os opositores, e o ocultamento da dimensão dos protestos por parte da maioria dos media, em especial televisivos.

Os recuos do governo, admitindo que os protestos contra o projecto de renovação da praça eram legítimos, após a intervenção conciliatória do presidente Abdullah Gül, eleito pelo PJD, representam uma desfeita para Erdogan.

As três vitórias eleitorais do PJD – chegando aos 50% de votos em Junho de 2011 – e nos referendos constitucionais de 2007 e 2011, permitiram irradicar a tutela militar e através de processos judiciais controversos afastar putativos conspiradores tentados a repetir os golpes de estado castrenses de 1960, 1971 e 1980.

Julgamentos por ofensas à pátria, à religião e bons costumes, sucedem-se ameaçando a liberdade de expressão, mas, excepto em casos de notório prejuízo económico como a recente lei restringindo a venda de bebidas alcoólicas, a base social do PJD, em particular no interior da Anatólia, mantém-se sólida.

A inexistência de partidos de oposição credíveis para liderar uma plataforma de alternativa anti-islamista, com destaque para a ineficácia dos sociais-democratas de Kemal Kilicdaroglu do "Partido Republicano do Povo", torna mais amorfos os protestos que tendem a centrar-se na pessoa do chefe do governo.

Erdogan, constrangido pelo limite de três mandatos governativos estipulado pelo seu próprio partido, aspira a candidatar-se à presidência da república no próximo ano.

O líder do PJD defende por isso uma transformação da instituição presidencial, dotando o chefe de estado de poderes para dissolver o parlamento e convocar eleições, promulgar decretos por iniciativa própria e mobilizar as forças armadas em situações de emergência.

Para aprovar tais alterações constitucionais Erdogan necessita do apoio na Assembleia Nacional dos curdos do "Partido da Paz e Democracia" e isso impele o primeiro-ministro a levar a bom porto, pelo menos numa primeira fase, o plano de paz acordado este ano com os separatistas do "Partido dos Trabalhadores do Curdistão".

Se o cessar-fogo, a par de autonomia e liberdades crescentes para as regiões curdas, se encaminhar no sentido de pôr termo ao conflito armado que se arrasta desde 1984, Erdogan contará com um trunfo pessoal de vulto.

A pacificação do sudeste curdo está, contudo, muito dependente do evoluir da situação na Síria, no Iraque e no Irão que apresentam grandes riscos para política de projecção alargada de influência e protecção de interesses turcos.

A ruptura com Israel – um aliado desde os anos 50 –, a impossibilidade de concretizar a adesão à UE dada a hostilidade da Alemanha e da França, a divisão de Chipre são dados adquiridos da conjuntura.

Independentemente de eventuais desenvolvimentos indesejáveis da questão curda e da guerra civil síria, os planos de Erdogan confrontam-se, em primeiro lugar, com a hostilidade de líderes do seu próprio partido e de Abdullah Gül e uma excessiva concentração de poder é igualmente rejeitada pelos influentes islamitas do pregador Fethullah Güllen.

O prestígio e a autoridade de Erdogan estão à prova, mas a preocupação maior do líder islamita, vítima da sua veia autoritária, passa pelo relançamento do consumo interno, grande responsável pela quebra no crescimento económico que, após taxas de 9,2% em 2010 e 8,8 % em 2011, caiu para 2,2% no ano passado.

As eleições locais em Outubro vão mostrar a mossa que possam ter a actual contestação, as incertezas económicas e os conflitos armados.

Jornalista

barradas.joaocarlos@gmail.com

http://maneatsemper.blogspot.pt/

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