Opinião
A queda de Bagdade
Até serem postos em causa a produção e escoamento do petróleo e gás natural das monarquias sunitas do Golfo, as flutuações nos fornecimentos do Iraque produzirão altas de preço meramente pontuais.
A mobilização militar xiita pela defesa de Bagdade vai acarretar nova vaga de expulsões, fugas e massacres de sunitas da capital contribuindo para acentuar ainda mais a partilha territorial étnico-religiosa do país e o colapso de facto da entidade estatal iraquiana.
A ofensiva dos jihadistas do "Estado Islâmico do Iraque e do Levante" (EIIL), que apesar de contarem com apenas cerca de 10 mil homens passaram a controlar as regiões árabes maioritariamente sunitas no Iraque, congrega milícias tribais e outros grupos armados, incluindo os irredutíveis saddamistas de Izzat Al Douri (antigo vice-presidente em fuga desde 2003), unidos pontualmente pela revolta contra a hegemonia do bloco político-religioso xiita.
Após a perda de Mosul, seguiram-se apelos do Grande Aiatola Ali Al Sistini, de Muqtada Al Sadr e de Nuri Al Maliki à união dos fiéis xiitas contra a ameaça jihadista, enquanto forças curdas consolidavam posições militares consolidando a autonomia de facto das regiões do Norte do Iraque, e Teerão enviava alguns milhares de militares para combaterem na Mesopotâmia, replicando o apoio concedido a Bashar Al Assad e ao Hizballah libanês.
Na ausência de partidos laicos, excepto entre os curdos maioritariamente sunitas, os árabes do Iraque digladiam-se em função de identidades clânicas, tribais e religiosas e Bagdade está prestes a converter-se num bastião xiita.
Uma nova era
No auge da guerra civil de 2006-2008 boa parte dos sunitas de Bagdade - que representavam a maioria da população da capital na década de 40, sensivelmente quase metade dos habitantes da urbe até à queda do regime de Saddam Hussein e, presentemente, pouco mais de 10% dos residentes - fugiu ou foi escorraçada, acabando desprezada e desconsiderada como as minorias cristãs ou turcomenas.
A coligação de partidos religiosos xiitas de Al Maliki excluiu politicamente os sunitas, incompatibilizou-se com os curdos, e Bagdade, antiga capital do califado abássida sunita, surge, pela primeira vez, convertida em metrópole xiita num eixo que se prolonga para sul às cidades santas de Najaf e Karbala e até Bassorá nas margens do Golfo Pérsico.
Aos sunitas irão restar as províncias centrais e as regiões adjacentes da Síria onde os jihaditas da EIIL, seguindo uma lógica de extermínio de infiéis e apóstatas renitentes à sua interpretação da lei islâmica, acabarão por dar lugar, num prazo impossível de definir na actual conjuntura, a forças islamitas capazes de garantirem a integridade territorial e operacionalidade administrativa.
De momento os combates entre jihadistas na Síria, opondo em particular a EILL e a "Jahabat Al Nusra" ("Frente para a Vitória do Povo Síria"), as divisões entre facções dos "Irmãos Muçulmanos" e a irrelevância de grupos laicos sunitas capazes de se aliarem a minorias não-alauítas (cristãos, druzos, ismaelitas, curdos), garantem espaço de manobra a Bashar Al Assad contra a maioria sunita, mas os alauítas, caso único de uma minoria heterodoxa do xiismo alcandorada ao poder no final dos anos 60, estão condenados a ceder Damasco.
O ruir das fronteiras impostas por britânicos e franceses após a queda do Império Otomano implica a divisão territorial da Síria, restando para os alauítas a região costeira de Latakia, uma acentuada subordinação das minorias étnico-religiosas, confinadas a enclaves regionais num quadro em que predominarão equilíbrios políticos favoráveis às maiorias sunitas sírias e xiitas libanesas.
O preço do petróleo
A real autonomia dos curdos do Norte da Síria e do Iraque tenderá à formação de um ou mais estados independentes que serão focos de atracção para as minorias curdas do Sudeste da Turquia e Noroeste do Irão, tal como a consolidação xiita, pelo menos no Sul do Iraque, nas regiões costeiras da Síria e partes do Líbano, a par do Irão, contribuirá para inspirar e manipular reivindicações das populações xiitas maioritárias no Nordeste da Arábia Saudita e no Bahrein.
Até serem postos em causa a produção e escoamento do petróleo e gás natural das monarquias sunitas do Golfo, as flutuações nos fornecimentos do Iraque produzirão altas de preço meramente pontuais.
Curdos e xiitas dominam as principais regiões petrolíferas da Mesopotâmia e apesar de ser impossível atingir os 4 milhões de barris/dia, que o governo de Bagdade vinha apontando para o final deste ano, cortes no investimento, produção e fornecimentos, associados a quebras de produção na Líbia que ronda presentemente os 250 mil barris/dia podem ser compensados pela Arábia Saudita e, subsidiariamente o Irão, para evitar que os preços ultrapassem persistentemente os 120 dólares ou se fixem bastante acima dos 110 dólares por períodos prolongados.
As projecções da "Agência Internacional de Energia" divulgadas terça-feira, sem incorporarem a eventualidade da desintegração do estado iraquiano, apontam para uma produção de 4,29 milhões de barris/dia em 2018, quase menos 500 mil barris/dia do que o previsto em 2013, e, é bem possível, que estes cálculos tenham de ser revistos em baixa.
O agudizar dos confrontos identitários de matriz religiosa, uma das consequências da revolução de 1979 no Irão, a par do fracasso das ideológicas nacionalistas do pan-arabismo socialista, da contestação ao kemalismo na Turquia e ao sionismo laico em Israel, destruíram o mapa do Médio Oriente concebido em Londres e Paris e confirmado pela aliança da administração de Franklin Roosevelt com Ibn Saud.
Cedo ou tarde, as convulsões do Levante, em que avultam um Irão dotado de armas nucleares, Israel a braços com a insolúvel partilha de território com palestinianos e o bloqueio político-económico do Egipto, abalarão as monarquias sunitas do Golfo e, então, a questão do petróleo mudará de figura.
Jornalista