Opinião
"Vamos pôr o João Soares no lugar certo"
O Museu Nacional de Arte Antiga pede aos portugueses para, numa inédita ação de crowdfunding, comprarem um quadro de Domingos Sequeira, para que todos os portugueses o possam ver.
Nas palavras do diretor, António Filipe Pimentel, é a opção que faz mais sentido "numa altura de dificuldades financeiras". O quadro vale 600 mil euros.
Por seu lado o ministro da Cultura, João Soares, está-se nas tintas para as dificuldades financeiras do país, obrigando os portugueses a comprar 85 Mirós, avaliados entre 35 e 53 milhões de euros. E garante: as obras de Joan Miró ficarão em Portugal "para todo o sempre", "mesmo que haja repercussões de natureza patrimonial e financeira". Pois muito bem!
Mas vamos recapitular. No acervo do BPN existiam 85 obras de Miró, avaliados entre 35 e 53 milhões de euros. Foram encontrados em 2008, um sinal de esperança no meio de um buraco económico que custou muito caro aos contribuintes. Em 2014, o Governo de então decidiu vendê-los, na esperança de reduzir o que nos tinha de sair do bolso. Ouviram-se logo vozes de protesto, que se lixasse o dinheiro, o que importava é que ficassem em Portugal e fossem expostos, para que os pudéssemos desfrutar, nós e as hordes de estrangeiros que cá os viriam ver. Afinal, garantiam, o que são mais 35 milhões ou menos 35 milhões, fazendo as coisas por baixo, ainda por cima quando bem feitas as contas com os 10% da leiloeira, e mais a camioneta para os levar, ficavam só uns milhões e uns trocos, afinal uma insignificante migalha quando se pensa no total da dívida nacional. Além do mais, os ingressos para a exposição acabariam por render mais ainda. Nos dias inspirados até lhes dava para citar o Evangelho lembrando que nem só de pão vive o homem, que isto de citar a Bíblia ou usar imagens religiosas só dá direito a explosão nas redes sociais se vier da boca de algum suposto fascista.
Entretanto, os defensores da venda, que lembravam que os quadros pertenciam aos credores e não ao Estado, acenavam com os milhões que se perdiam em juros, cerca de cinco mil euros por dia, diziam, mas a verdade é que os Mirós ficaram mais dois anos fechados numa caixa-forte, enquanto o Ministério Público processava os alegados traficantes, acusando-os de enviar as obras para Londres sem a papelada em dia.
Até que chegou João Soares. Com o seu reconhecido despreendimento ao vil metal, a avaliar pela forma como atirou ao Tejo um projeto de outros tantos milhões, declarou imediatamente que as obras de Miró ficarão em Portugal "para todo o sempre", custe o que custar. Aos contribuintes, evidentemente. Aparentemente a única coisa que o preocupa é se ficam a norte, se ficam a sul, porque, explicou, se ficarem a norte a primeira exposição deve ser a sul, e se forem para sul a primeira exposição deve ser a norte. O Estado no seu melhor, pobre e de mão estendida quando convém, rico e omnipotente quando lhe dá jeito.
Enquanto isto o país felizmente evolui, e logo numa casa que está sob a sua alçada. A genial campanha de crowdfunding "Vamos pôr o Sequeira no Lugar Certo" prossegue até dia 30 de abril, por iniciativa do Museu Nacional de Arte Antiga. Como explicou o seu presidente, António Filipe Pimentel, "nesta altura de dificuldades financeiras, este tornou-se um mecanismo internacional bastante usado pelos museus. Em Portugal será a primeira vez." Ou seja, entende-se que o Estado não chega para tudo, fazendo sentido que se alie à sociedade civil na defesa do património.
Mas João Soares deixa claro que essas modernices não lhe interessam. Enquanto António Filipe Pimentel puxa pela cabeça para conseguir garantir uma obra de Domingos António Sequeira (1768- 1837), o ministro da Cultura adquire com o nosso dinheiro o equivalente a 83 Domingos Sequeiras de uma assentada.
P.S.: A Fundação Miró, em Barcelona, vale bem uma visita, mas saía mais em conta oferecer passagens: 53 milhões pagariam cerca de 700 mil de ida e volta (os nove mil subscritores do abaixo-assinado contra a venda teriam prioridade). Quanto a João Soares, talvez bastasse um bilhete de ida.
Jornalista
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