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Quando a tecnologia funciona e a humanidade falha

O relato da falta de socorro no incêndio de Estremoz, desde a inacreditável falha de uma operadora do 112, a quem passou e nada fez, deixa a certeza de que quando o coração falha, está tudo perdido.

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1. Quando há pouco mais de um mês o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, foi à Assembleia da República praticamente de guarda-chuva e galochas para dizer aos portugueses que, e cito, "Houve uma queda abrupta do número de incêndios este ano graças ao ataque imediato", resultado das políticas do seu estimado governo, abri a boca de espanto.

 

Primeiro, porque não cessa de me espantar a convicção dos políticos de que não temos nem memória nem inteligência que chegue para perceber que a gratidão pelo atraso no início dos fogos se devia não a António Costa, mas a São Pedro.

 

Segundo, porque também me espanta sempre a facilidade com que esta gente dá tiros nos pés. É que se até agora a honestidade intelectual obrigava a que, embora lamentando a falta de eficácia na resposta a tragédias como as de Pedrógão, reconhecêssemos que a grande causa dos incêndios de 2017 foram os imprevisíveis fenómenos atmosféricos, neste momento tudo mudou. Ou seja, perante um Governo que pretende colher os louros e capitalizar quando Portugal não arde, talvez então seja justo assacar-lhe as culpas integrais quando arde. Por muito que, perante novas tragédias, nos mandem queixarmo-nos a uma empresa de vidros de automóveis!

 

2. O relato de um familiar dos seis jovens apanhados por um incêndio próximo de Estremoz, dois deles ainda em estado grave, tal como é contado pelo Observador, provoca uma enorme indignação. Segundo afirma, os miúdos ligaram para o 112, sendo-lhes recusado socorro, com o argumento de que não conheciam a localização do monte onde se encontravam (a um quilómetro da vila), recusando ainda por cima o envio da localização GPS, alegando não ter forma de a receber. A operadora alegadamente ter-se-á limitado a desejar-lhes "boa sorte", e aparentemente nem sequer notificou os bombeiros. A Autoridade Nacional de Proteção Civil e o INEM  não responderam ao esclarecimento pedido pelo Observador, nem aquando da divulgação da notícia, nem até agora (48 horas depois) - é grave demais para tanto silêncio, e só espero que a notícia da escassez de meios do 112, que entretanto veio a público, não seja uma tentativa de escamotear uma omissão aparentemente criminosa.

 

Mas a descrição daquelas horas de pavor não se fica por aqui. Segundo a mesma familiar, houve um vizinho que não abriu a porta, e o que chegou primeiro à estrada, descalço e aterrorizado, deixando para trás os amigos em situação de perigo extremo, viu passar por si seis ou sete carros, inclusive um de bombeiros, que não pararam, até que finalmente um "anjo da guarda", como refere, o levou ao centro de saúde. O que se anda a passar nas nossas cabeças? Seguimos a par e passo o resgate de umas crianças numa gruta na Tailândia, e não paramos numa estrada em Estremoz? Porque temos pressa, ou mais provavelmente medo de um assalto? A síndrome do Mundo Mau, que por excesso de televisão e escassez de realidade leva a acreditar que estamos rodeados de bandidos, é mais perigosa e faz mais estragos do que todas as vagas de calor e incêndios juntos. Porque se não nos rouba a vida, rouba a humanidade.

 

Jornalista

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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