Opinião
Os militantes da vida dupla
Não pode o comum mortal deixar de se perguntar como é que alguém ainda consegue manter secreta uma parte da sua existência, seja aquela que passa num casino ou num gigantesco motel digital.
De tempos a tempos surge uma sondagem ou um estudo patrocinado não se sabe bem por quem a garantir que o número de traições matrimoniais cresce de dia para dia, acenando com percentagens astronómicas e explicações não menos estapafúrdias. Ou é porque os homens têm mais tendência à infidelidade "quando estão prestes a entrar numa idade redonda", ou porque elas "se sentem dependentes do parceiro", já para não falar nos genes e na força das hormonas.
Fico sempre de boca aberta perante estas notícias, não pela ânsia de fazer juízos de valor sobre a vida alheia, mas pelo espanto que neste século de vigilância constante me provocam os afoitos militantes da vida dupla. Num tempo em que a curiosidade mórbida das Finanças escrutina cada um dos nossos ganhos e gastos, e o poder judicial não resiste a escutar uma conversa, rapidamente transformada numa manchete de jornal, mas sobretudo quando andamos todos voluntariamente afivelados a uma infinidade de "gadgets" tecnológicos mais eficazes do que a mais sofisticada pulseira eletrónica, surpreende-me a desenvoltura destes resistentes.
De facto, não pode o comum mortal deixar de se perguntar como é que alguém ainda consegue manter secreta uma parte da sua existência, seja aquela que passa num casino ou num gigantesco motel digital. Então manter um/a amante dá ideia de missão impossível, com tanta Via Verde e cartões de crédito, localizadores que até sabem a rua onde perdemos o telemóvel, porta-chaves que memorizam onde o carro ficou estacionado, motores de busca que registam não só o que consultámos, vimos e visitámos, como adivinham o que vamos fazer a seguir como, vivendo num mundo assim, é possível não ser descoberto?
Aparentemente basta perguntar ao Google. Quando o fiz percebi que até existe um Wiki How, que ensina a enganar sem ser apanhado, tanto em inglês, como em brasileiro. As primeiras linhas destinam-se a desencorajar a traição, para rapidamente concluir que se, de todo em todo, for impossível resistir-lhe devem seguir-se metodicamente os conselhos propostos. A lista é longa e exige empenho, tanto que me parece não deixar muito tempo livre para a atividade extramatrimonial em si. O primeiro passo é criar uma conta de e-mail exclusiva para comunicar com a pessoa em causa, obrigando a um "log out" sempre que utilizada. Recomenda-se a limpeza constantemente do histórico do "browser", mas só parcialmente, já que também muito limpo gera desconfiança. Pedem que o traidor/a não esqueça que os sítios que visitou vão memorizar o seu IP, enviando-lhe publicidade - ou seja, se não apagar os "cookies" terá a desagradável surpresa de ver anúncios de motéis a saltitar no ecrã do computador ou telemóvel. Segue-se-lhe a questão dos códigos, e do "porquê agora?", da dificuldade de explicar a necessidade de um aparelho pré-pago e aconselham que, ao contrário do que a própria lei preconiza, se saldem todas as contas em dinheiro vivo. Decididamente nada que alguém disposto a caçar uma infidelidade não contorne num instante, seguindo aliás um Wiki How, desta vez dedicado a apanhar quem engana. De toda esta incursão conclui que aquilo em que um traidor devia pensar é se existe, de facto, alguém verdadeiramente interessado em desmascará-lo É que, desconfio, os que andam a enganar, já são enganados.
Nota: é claro que, a partir de agora, vou dizer cá em casa que todos os anúncios e referências a "como trair" que aparecerem no meu computador são apenas o resultado da investigação que fiz para esta "reportagem".
Jornalista
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