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07 de Março de 2017 às 20:53

Em democracia, a grosseria não é só um problema de estilo

Quem diria que chegaríamos a um ponto em que a sobriedade é uma ideia radical e a cortesia, um acto revolucionário?

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Notoriamente arrebatado pelo resultado eleitoral que o reconduziu na liderança do Sporting Clube de Portugal, Bruno de Carvalho embandeirou em arco: "Ouvi hoje em muitos programas comentadores dizerem que era um populista. Não, gosto é de estar ao vosso lado, ao lado dos sócios. Por isso, e como dizia o meu tio-avô Pinheiro de Azevedo, que foi primeiro-ministro, bardamerda para todos aqueles que não são do Sporting Clube de Portugal."

 

Não admira que o jornal britânico The Independent se tenha referido a Bruno de Carvalho como "o Donald Trump do futebol", que com o seu jeito "franco, conflituoso, imprevisível e abrasivo" quer "secar o pântano" da modalidade em Portugal. Eu gosto de manter sempre um certo cepticismo sarcástico contra estes exercícios jornalísticos forçados, mas se é o próprio presidente do Sporting que deseja forçar a comparação, quem sou eu para jogar à defesa?

 

Como é evidente, a forma antidesportiva de estar no desporto não foi inaugurada agora. Ela tem uma tradição sólida no mundo do futebol português - nos dirigentes, nos comentadores, nos adeptos. Por isso, Bruno de Carvalho beneficia da mesma condescendência de que antes dele todos beneficiaram. Uma condescendência que funciona com dois argumentos: em primeiro lugar, que se trata só de futebol; em segundo lugar, que é uma mera questão de estilo. E o estilo não é substância: como dizia o tio-avô Pinheiro de Azevedo, "é apenas fumaça".

 

O problema é que estas atenuantes só seriam válidas se o futebol (ou, melhor, as polémicas extrafutebol adjacentes ao futebol propriamente dito) não tivesse a extraordinária presença que tem no espaço público português, competindo directamente pela atenção mediática com os principais temas políticos, em princípio bem mais relevantes para o bem-estar colectivo, e se não assistíssemos, na discussão dos temas políticos, a uma degradação galopante das regras do debate, do léxico e das atitudes, que mimetiza o "hooliganismo" da discussão futebolística.

 

Nas sociedades ocidentais, o debate dos temas públicos atingiu níveis tais de grosseria, amplificada pela selva das redes sociais e pelos que as dominam, que hoje o primeiro dever de cidadania é o de "secar o pântano" em que se transformou o espaço democrático comum, denunciando e lutando contra todos os que, independentemente das ideias que defendam, contribuam para o ambiente de guerra civil permanente.

 

A vantagem moral da democracia está na possibilidade de todos serem ouvidos e de assim contribuírem, em maior ou menor medida, para o bem geral. No entanto, uma democracia de gritaria e dedo em riste é um exercício de soma nula. Nenhuma discussão racional é possível quando o interesse dos participantes nessa discussão é, antes de mais, a desconsideração pessoal daqueles que, por entre a cacofonia, suspeitam ser seus adversários.

 

A democracia depende de um campo comum em que prevaleça o espírito de conversação, abertura e disponibilidade para a síntese, espírito esse que a grosseria como plataforma política inviabiliza, eliminando as regras da própria democracia e tornando-a, pura e simplesmente, infértil.

 

A grosseria no espaço democrático não é um problema de estilo. É uma questão política central. Lutar contra o seu império é fundamental. Quem diria que chegaríamos a um ponto em que a sobriedade é uma ideia radical e a cortesia, um acto revolucionário?

 

Advogado

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