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Opinião
27 de Agosto de 2020 às 13:00

Never Trump

Os partidos conservadores têm historicamente um papel decisivo nas democracias, pela forma como enquadram as tendências radicais da própria direita e moderam paixões alimentadas por ressentimentos, teorias da conspiração lunáticas e tendências racistas e xenófobas. O moderno partido Republicano de Trump não modera estes impulsos, alimenta-se deles.

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No princípio dos anos 80, a eleição simultânea de dois líderes de direita no Reino Unido e nos Estados Unidos – Margaret Thatcher e Ronald Reagan – teve influência duradoura na política de todo o mundo, inaugurando o domínio de um pensamento que entretanto se veio a chamar neoliberal. Quarenta anos passados, temos nos mesmos países dois líderes também unidos, não tanto por uma ideologia, mas por um estilo de fazer política. Um estilo cujos traços fundamentais, que incluem falta de apego a quaisquer princípios ou valores e falta de decência ou escrúpulos, são por vezes apresentados como “talento político”. O perigo que também este estilo, se bem-sucedido, venha a marcar as próximas décadas faz das eleições americanas deste ano das mais importantes de que temos memória, até porque o lado americano deste binómio é de longe o pior e mais perigoso.

Esta semana está a realizar-se a Convenção Republicana que nomeará Donald Trump como candidato à reeleição. O facto de o Partido Republicano o ir fazer sem oposição significativa é o testemunho de como neste partido triunfaram as piores tendências que se adivinhavam nas últimas décadas.

As razões para dizermos que uma pessoa decente não pode votar em Donald Trump são inúmeras – não cabem num pequeno artigo de 3.500 carateres. A criatura e o seu círculo próximo são um poço infindável de mentira descarada, corrupção, egotismo, táticas políticas sujas e falta de capacidades básicas de governação. Para quem vive fora dos EUA, tem talvez mais consequências o predomínio de um pensamento anticientífico que mina a ação coletiva contra os problemas fundamentais da humanidade – desde as alterações climáticas ao combate à pandemia. Eles constituem também um risco para o funcionamento da democracia americana e, por causa do poder irradiante que os eventos políticos nos Estados Unidos sempre têm, também um risco para a democracia no mundo.

Como destaca esta semana, no New York Times, um ex-operacional político do Partido Republicano: os partidos conservadores têm historicamente um papel decisivo nas democracias ocidentais, pela forma como enquadram dentro de um regime de pluralismo e alternância as tendências radicais da própria direita; pela forma como moderam paixões alimentadas por ressentimentos, teorias da conspiração lunáticas e tendências tribais (racistas e xenófobas). O moderno Partido Republicano de Trump não modera estes impulsos, alimenta-se deles – como exemplificado recentemente pelo piscar de olho ao QAnon, um grupo de maluquinhos que acha que os opositores do Presidente são uma organização secreta de pedófilos adoradores de Satanás que extraem hormonas do sangue das crianças.

A falta de apego de Trump à democracia é evidenciada pela forma como declarou em 2017 que um conjunto de energúmenos que se manifestava com bandeiras nazis em Charlottesville incluía “very fine people”, ou pelas numerosas declarações de simpatia por vários líderes totalitários pelo mundo fora. Mais recentemente, parece também pretender minar a legitimidade das próprias eleições americanas de novembro.

Com todos os seus defeitos, a democracia americana apresenta ao mundo um extraordinário exemplo de continuidade. Sem interrupção, de quatro em quatro anos, desde 1788, realizam-se eleições para escolher o Presidente dos Estados Unidos. Uma única vez parte do país recusou a legitimidade da eleição, e a consequência foram quatro anos de sangrenta guerra civil. Neste ano, escreve-se com preocupação que Biden não tem apenas de ganhar, mas tem de ganhar muito expressivamente, ou os resultados não serão aceites pelo outro lado. A mera possibilidade de parte significativa dos atores institucionais não aceitar a legitimidade eleitoral da sua derrota, interrompendo o funcionamento do mecanismo central da democracia que permite a alternância de poder sem violência, é aterradora.

 

Biden não tem apenas de ganhar, mas tem de ganhar muito expressivamente, ou os resultados não serão aceites pelo outro lado.
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