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26 de Fevereiro de 2020 às 19:01

A solidariedade e os outros

O que é que fazemos ao cidadão que não tem seguro e chega à urgência? Deixamos morrer? A história não regista a atrapalhada resposta de Paul, mas regista as vozes dos seus apoiantes que da audiência disseram “sim!”.

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As políticas redistributivas, esse elemento fundamental da sociedade “justa e solidária” que a nossa Constituição afirma que estamos empenhados em construir, dependem de nos sentirmos parte de uma comunidade política. Só existe quando sentimos que fazemos parte de um todo e que temos responsabilidades para com os outros seres humanos que fazem parte da mesma comunidade. Felizmente, uma maioria política e social tem essa opinião e dá legitimidade a esse papel do Estado. Sem essa opinião, não seria possível sustentar politicamente os elevados níveis de tributação necessários aos Estados sociais dos países europeus.

O não reconhecimento desse sentimento de comunidade é o grande falhanço dos movimentos políticos e dos filósofos ditos “ultraliberais” ou “libertários”. É o falhanço exemplificado por um famoso momento de uma campanha presidencial americana: o libertário Ron Paul, que defendia que cada um tem de ser responsável por fazer um seguro de saúde que acautele as suas próprias despesas, é confrontado com a pergunta crítica - o que é que fazemos ao cidadão que não tem seguro e chega à urgência? Deixamos morrer? A história não regista a atrapalhada resposta de Paul, mas regista as vozes dos seus apoiantes que da audiência disseram “sim!”. É esse “sim”, assinalando a total desresponsabilização da colectividade perante o destino de um dos seus membros, que felizmente não corresponde ao sentir da maioria, e por isso podemos continuar a aspirar a viver numa sociedade decente.

Por isso mesmo, a grande arma contra políticas com efeitos redistributivos é sempre a desumanização de certos sectores da sociedade, a exclusão de algumas pessoas dessa comunidade política, que passam ao estatuto de “os outros”. Esses outros podem ser definidos geograficamente, como o fazia o antecessor de Salvini, Umberto Bossi, ao tratar todo o Sul da Itália como parasitas. Mais frequentemente, esses “outros” são definidos pela cor da pele – é tão frequente ver críticas a programas sociais em que o subtexto é que são políticas cujos beneficiários são pessoas de pele escura, que não são “como nós”.

Um processo semelhante a este explica as dificuldades crescentes de expandir os recursos disponíveis para as políticas financiadas pelo Orçamento da União Europeia. O ponto de vista dominante da análise, quase exclusivo, é o da comparação entre as transferências de cada país para o Orçamento da União e a subsequente aplicação em cada país desses recursos. Opiniões públicas que, em toda a Europa, suportaram ainda recentemente as perdas de bem-estar resultantes da disparatada ideia de mergulhar todo o continente em austeridade são naturalmente resistentes a reduções adicionais dos recursos públicos ao dispor da sua própria comunidade.

Essa dificuldade existe mesmo face a propostas nas quais não é possível determinar à partida para onde vão os fluxos financeiros futuros – propostas como o seguro comum de depósitos bancários ou o co-financiamento europeu do subsídio de desemprego. Não parece possível ultrapassar a resistência das opiniões públicas de alguns países face à possibilidade de transferência de recursos para os cidadãos de outros países.

Todas as propostas de alargamento do orçamento da União vão assim chocar com uma realidade em que só há comunidades políticas nacionais, e é a estas que os responsáveis políticos respondem. Ninguém verdadeiramente leva a sério análises que agrupem os europeus por outros critérios que não o seu país (idade, género, preferências políticas, papel na produção). E do ponto de vista de cada uma dessas comunidades nacionais, todos os restantes europeus são “os outros”.

 

Do ponto de vista de cada uma dessas comunidades nacionais, todos os restantes europeus são “os outros”.
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