Opinião
[742.] Intermarché; Cien
Ainda agora começa Fevereiro e já temos um forte candidato a anúncio mais irritante do ano: o reclame televisivo de Intermarché com uma mulher de braço no ar.
Ela espreguiça-se sentada na cama já com o braço direito levantado; e assim continua quando lava os dentes e o marido lhe dá uma beijoca enquanto ela esfrega as gengivas; continua de braço no ar ao pequeno-almoço com os pequenos, menino e menina, já sem o papá presente; a despedir-se deles, quando os põe no transporte escolar; e quando se aproxima da entrada triunfal do Intermarché.
Lá dentro, a coisa prossegue: o suspense da narrativa - porque estará ela estupidamente com o braço no ar o dia todo? - só se resolve nos últimos segundos, depois de um empregado de balcão a cumprimentar com alegria e de uma empregada na zona dos legumes lhe apontar o caminho no corredor: é que onde ela queria mesmo, mesmo ir era à zona das carnes, onde a aguardava o talhante para a cumprimentar com um "give me 5" à maneira. Ficam ali à conversa, decerto ele explica-lhe que tem um acém redondo muito bom.
Embora o logótipo da cadeia de supermercados seja baseada no encarnado, a mulher está sempre de verde, seja pijama ou casaco, e o mesmo sucede com as outras personagens. O verde pretenderá transmitir a ideia de compras sossegadas? Pode ser. Decerto ajuda. Mas a ideia principal - a ideologia - imbuída no anúncio é a de que quem faz as compras lá em casa é a mulher e que ela deve pensar nas compras desde que acorda e se espreguiça na cama: nós vemo-la acabadinha de sair do vale de lençóis e já sonhando com o momento em que se encontrará com o talhante de Intermarché. Suponho que as mulheres que vão às compras - o anúncio é para elas, dado que o marido se pira da narrativa mal a vê a lavar os dentes - adorarão ver-se representadas de braço no ar o dia todo, uma canseira, e obcecadas, todavia com felicidade, na ida ao talho do supermercado.
Um outro anúncio para mulheres especula sobre o conceito de beleza. Andam filósofos e estetas a debater o assunto há milénios e eis que publicitários de cremes para a cara resolvem o dilema em 30 segundos. É assim: "O que é ser bonita? É ser intuitiva e imaginativa. É saber pensar. É ser perspicaz a tomar decisões." Neste momento, a protagonista, Andreia Rodrigues, apresentadora de TV, olha para a câmara e diz: "Aqui entre nós, é fazer as melhores escolhas." Regressa a voz-off masculina, decerto já sem ser aqui entre nós: "Nada é mais bonito que a inteligência. Os produtos Cien têm sido reconhecidos por vários testes independentes. e são a melhor forma de cuidar do seu rosto. Cien: para mulheres mais que bonitas."
O texto do reclame responde à pergunta "o que é ser bonita?" sem mencionar quaisquer características da beleza física a que se destinam os produtos cosméticos, como os anunciados. Basicamente, a ideologia da mensagem é esta: "ser bonita" é ter autonomia de raciocínio para comprar produtos Cien; ter intuição, ou seja, impulso para mudar de marca; ter imaginação, idem, ser capaz de sair do quadro mental dos cosméticos que costuma usar; saber pensar, idem; ser perspicaz, idem; tomar a decisão de comprar Cien, idem. A marca precisa de convencer a observadora a comprar os seus produtos; portanto, sedu-la dizendo-lhe que é inteligente se os comprar, ficando implícito que, se não os comprar, é estúpida; e como, na filosofia-Twitter do anúncio, a inteligência é beleza, se a observadora comprar Cien, além de inteligente, é bonita; se não comprar, além de estúpida, é feia. Para filosofia de pacotilha, nada mal.