Opinião
[637.] Givenchy Phenomen'Eyes
Tal como as garrafas de vinho dizem "contém sulfitos", os anúncios deveriam obrigatoriamente dizer: "Contém photoshop."
O reclame da escova Phenomen'Eyes de Givenchy para "definição pestana a pestana & curvatura sem limites" é verdadeiramente impressionante. Trata-se de uma escova "icónica" (cá estão os ícones de novo!), o que quer que isso seja, mas, mais do que a descrição do produto, é a fotografia que impressiona: uma mulher morena olha para a sua direita, numa pose de que noutros tempos poderia parecer de recato e reflexão; a boca semiaberta, porém, dá-lhe um toque de ligeiro erotismo que nos traz para o nosso tempo. A boca semierótica da "Rapariga com o brinco de pérola", de Vermeer é, provavelmente, o que faz desse quadro de cerca de 1665 tão atractivo no nosso tempo.
A mulher de Givenchy está estática. Do seu lado esquerdo está uma mão com a escova "icónica", parada um pouco abaixo do olho esquerdo da mulher, para que o possamos ver todo. A mão não aplica o produto, ela apenas o mostra.
Ela tem uma blusa semitransparente de motivos "antigos", que acrescenta o ar clássico. O fundo é neutro, cinzento muito claro, para criar um contraste forte. Os cabelos castanhos foram escurecidos com efeito fotográfico para o acentuar. O cabelo escuro faz de pano negro, como o usado nos antigos retratos. Parece que alguém lhe pega no cabelo, de forma que tape mais o fundo do lado direito da foto, sublinhando o efeito.
É a cara que mais atrai, como sempre. E que cara esta! Tão trabalhada com efeitos que (quase) deixa de ser da mulher concreta fotografada. É uma cara de boneca de cera, com feições moldadas por artista, com o nariz retocado, as sombras na cana do nariz acentuadas, a pele totalmente alisada, sem poros, sem pelos, sem sinais, sem rugas, nada. As linhas dos olhos foram retocadas, talvez também as sobrancelhas, e decerto as pestanas, sim, as pestanas em que se aplica o produto anunciado. As próprias linhas do contorno, no maxilar e nas maçãs do rosto foram alteradas para que a mulher fotografada desse lugar a uma mulher idealizada.
A fotografia é hoje tão alterada como, antes dela, os retratos pintados, que melhoravam os modelos. Tendemos a pensar que os retratos, da Renascença ao século XX, eram realistas, mas a arte foi precisamente a de manter a analogia entre a pintura e a pessoa pintada acrescentando-lhe beleza. Quando o retrato era de facto realista podia desconcertar, como o que Velázquez fez de Inocêncio X. Ao vê-lo, o Papa disse: "Troppo vero!"
A mulher fotografada no reclame de Givenchy poderá dizer: "Sou eu, esta?", tal a desfiguração a que foi sujeita. O objectivo é o mesmo dos pintores. A diferença está em que ainda esperamos que a fotografia seja analógica, que mostre a "realidade", quando o seu uso pela publicidade serve precisamente para manter a crença na analogia, de forma a inculcar no observador a crença na verosimilhança entre o objecto fotografado e a imagem final. O que vemos, pois, é uma ficção e não uma realidade. Sobra sempre a questão ética, pois, enquanto a pintura não quer vender nada, a publicidade quer vender produtos através da crença na verosimilhança quando podemos desconfiar que não há verosimilhança entre o efeito do produto anunciado e o que nos é mostrado na fotografia.
Fotografia? Poderemos ainda chamar fotografia a uma imagem trabalhada, alterada, como um retrato antigo? Se o artista publicitário pinta a fotografia, retoca-a com software de pintura, quando usa o rato como se fosse um pincel, quando altera toda a superfície: é ainda uma fotografia? Que nome dar-lhe: não será mais correcto chamar-lhe apenas imagem, ou, pegando o touro pelos cornos, pintura? A resposta está no próprio anúncio: o publicitário diz-nos que o pintou como pinta as pestanas o pincel de Givenchy que acrescentou à imagem.
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