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31 de Julho de 2018 às 20:20

O dia do perdão

O problema é que as redes sociais têm uma outra interpretação para a palavra "perdão": perdoar é como perder a razão; como se eu admitisse ser culpado pelos erros alheios.

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As palavras, sempre as palavras. Diferente do que pensamos, as palavras não caem do céu. Cada palavra tem a sua origem, o seu dono, o seu pai.

 

Sempre que tenho dúvidas sobre determinado conceito, procuro saber um pouco mais sobre a etimologia da palavra que o melhor define. Foi o que fui fazer com o verbo "linchar".

 

Descobri que o ato, apesar de ocorrer desde tempos imemoriais, originou esse vocábulo quando um de dois homens (se não os dois) deu cara, pernas e braços à selvageria que o envolve.

 

Por volta de 1780, nos Estados Unidos, o coronel Charles Lynch e o capitão William Lynch, sem parentesco conhecido, e em pontos diversos do país, resolveram implementar a "Lei de Lynch", ou seja, executavam barbaramente quem achassem merecer. Daí para servir de base ideológica para as atividades do Ku Klux Klan foi um passo.

 

Quando era pequeno, no interior do Brasil, cheguei a presenciar alguns linchamentos físicos. Era algo "normal". Por sorte, esses linchamentos não chegaram até ao final (mas poderiam). Linchamentos verbais eram mais comuns (e não necessariamente menos violentos).

 

Chico Buarque tem uma bela canção a falar sobre linchamento. Chama-se "Geni e o Zepelim", que narra as desventuras de uma meretriz escorraçada de uma comunidade aos gritos de: "Joga pedra na Geni. Joga bosta na Geni. Ela é feita para apanhar. Ela é boa de cuspir. Ela dá para qualquer um. Maldita Geni!"

 

Lembrei da palavra e da música ao deparar-me na semana passada com a volúpia das redes sociais (das pessoas, digo) em julgar, condenar e executar penas sem direito a muita conversa.

 

Não, não estou a falar de nenhuma polémica recente aqui do burgo (embora elas existam, anoto). O caso que vou comentar veio do Brasil e está circunscrito à publicidade.

 

Um spot da Gillette brasileira foi apresentado no último domingo em rede nacional de TV. Nele, o jogador Neymar apresenta as suas desculpas após o seu errático comportamento no último Mundial. O tiro saiu pela culatra.

 

Bem produzido, o mea culpa de Neymar foi execrado por uma turba raivosa (pergunta: há turbas calmas?).

 

Eficaz? Duvido. Era (e é) um anúncio da Gillette que, para vender o conceito de que ao fazer a barba um homem é capaz de se renovar todos os dias, propõe que alguém que errou (no caso, o menino Ney) pode e deve aparecer de cara lavada e pedir mais uma chance.

 

A plateia entendeu algo diferente. Quem odeia Neymar (e, no Brasil, é muita gente) encontrou motivos para odiar um pouco mais. "Hipócrita!, "Falso!", "Vendido!", são alguns dos mimos que podem ser lidos no YouTube ao pé do filme.

 

Houve um tempo em que a publicidade era um dos canais expiatórios possíveis quando uma marca ou empresa cometia um deslize. Não é mais. Pouca gente quer ouvir desculpas seja de quem for. Aliás, vale a pena recordar o que o vocábulo "desculpa" quer dizer.

 

Quem pede desculpas não arroga inocência, pelo contrário, assume um delito, um erro, um dano. Assim, o perdão implica num acordo mútuo: eu aceito que errei, você suspende a minha pena por esse erro.

 

O problema é que as redes sociais têm uma outra interpretação para a palavra "perdão": perdoar é como perder a razão; como se eu admitisse ser culpado pelos erros alheios.

 

Não gosto nem deixo de gostar do tal anúncio do Neymar. Aprendi desde muito cedo que anúncio bom é anúncio que funciona. Se está a contribuir para a confusão, não está a ajudar. Mas também lamento que ele sirva para mais uma vez sublinhar a intolerância dos dias de hoje.

 

Ou como diria o meu Tio Olavo: "Nunca peça desculpas. Quem é seu amigo não precisa delas. Quem é seu inimigo não as quer ouvir."   

 

Publicitário e Storyteller

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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