Opinião
Meu querido psicopata
Obrigo-me a questionar: quando foi que passámos a gostar tanto do diabo, do cramunhão, do belzebu, do tinhoso, do capiroto, do pé de bode?
Rocky Balboa, Rain Man, Forrest Gump. Cada um teve a sua época, a sua década (70, 80, 90), mas eram heróis irmanados nalguns pontos. Eram tortos, no sentido de fora da norma, estranhos por fora, donos de grandes corações e, até por isso, ajudavam-nos a acreditar na bondade da espécie humana.
O "zeitgeist" agora é outro. Os novos heróis são cada vez mais feios, sujos e maus. E há várias boas séries na plataforma Netflix a comprovar isto.
Vou falar de duas: "You" e "Dirty John" que trazem sociopatas como protagonistas. São homens charmosos, capazes de conquistar as mulheres que desejam e de encantar o público. Apesar dos seus atos reprováveis e criminosos, acabamos por desejar que se redimam. Afinal, o sociopata é, por definição, um fingidor, que finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente (obrigado, Pessoa).
Também na Netflix, há uma interessante série documental sobre Ted Bundy, o criminoso que ajudou a criar a expressão "serial killer". Mais uma vez, o protagonista aqui é um poço sem fundo de misérias. O que não impediu de provocar o aparecimento de um verdadeiro culto de mulheres e homens à volta da personagem. A própria Netflix sentiu-se obrigada a publicar um "tweet" a lembrar que há gente mais decente no seu catálogo a merecer admiração.
Obrigo-me a questionar: quando foi que passámos a gostar tanto do diabo, do cramunhão, do belzebu, do tinhoso, do capiroto, do pé de bode?
Como bem escreveu Caetano Veloso, narciso acha feio o que não é espelho. E esse é o busílis da questão. Há nessa nova dramaturgia um alto grau de reconhecimento; vemo-nos naqueles homens com máscaras, que mentem descaradamente, apresentando-se como sinceros. Estamos a empatizar com os carrascos, estamos a nos identificar com os vilões.
Não deixa de ser irónico. Queremos ser liderados por pessoas tão virtuosas quanto impossíveis de existir. Não aceitamos o mais pequeno deslize verbal de ninguém, fazemos uma revisão ao pormenor dos comportamentos pretéritos e presentes das figuras públicas. Exigimos que seres humanos sejam anjos impolutos ao mesmo tempo em que adoramos personagens bizarros, errados, malditos.
Essa conta não fecha. Não há de fechar. Há qualquer coisa no ar que não augura nada de bom. Está no ar e cheira a enxofre. Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Guimarães Rosa: "Deus existe mesmo quando não há. Mas o demónio não precisa de existir para haver."
Publicitário e Storyteller