Opinião
Vasco Graça Moura
Enorme poeta, certamente um dos maiores da nossa lírica, era, por igual, um ensaísta invulgar, e um dos seus livros, "Contra Bernardo Soares", de inspiração proustiana ("Contre Sainte-Beuve"), está entre os melhores de especulação intelectual entre nós editado.
A agressividade vocabular com que Vasco Graça Moura defendia as suas ideias, as suas causas e as suas convicções surpreendia aqueles que conheciam a sua elegância de espírito, a polidez e a esmerada educação com que se movia na vida. Não era o homem e o seu dúplice. Esta manifestação de carácter correspondia à natureza de uma índole simultaneamente polémica e cortês, atreita a não aceitar, de ânimo leve, a ignorância desaforada de quem se atrevia a contrariar o que, para ele, era uma evidência de facto.
Eu gostava muito do Vasco, e sabia que as suas aparentes contradições eram produto genuíno daquilo em que acreditava. Um dia, em público, num animado debate sobre cultura e política, no Porto, disse-lhe: "Você parece um caceteiro cavaquista!" Sem se desconcertar, alargando aquele sorriso que possuía algo de sarcástico e de maquiavélico, respondeu: "Olha quem fala!" Anos depois, na inauguração da Livraria Babel, Biblioteca Nacional, pareceu-me transbordante de saúde, e comentei: "Você está com um aspecto formidável!" E ele: "Acabei de dar cabo de um cancro!" Não era bem assim. Mas assim era ele, reservado com tudo o que fosse privado. Até a doença.
Quando Óscar Lopes morreu, o texto dele e o meu, publicados no "Diário de Notícias", coincidiram no respeito pelo grande professor e ensaísta, e na relação de episódios que ambos contámos. Num deles, ocorrido no Clube dos Fenianos, também no Porto, durante a apresentação do meu primeiro romance, "O Secreto Adeus", contava-se o incidente ocorrido entre mim e um dos agentes da PIDE, destacados para o varejo da ocorrência, tida pelos poderes como "subversiva." A dada altura, numa fanfarronada irresponsável, dirigi-me a um deles, que tomava notas, e, desabrido, perguntei-lhe: "Quer que fale mais alto, para perceber melhor?" Numa mensagem em "e-mail" que me enviou, por ocasião dos nossos artigos sobre Óscar Lopes, o Vasco contava mais pormenores do caso. Ele era muito miúdo, para aí dezasseis, dezassete anos, e, desde mais novo, estava sempre presente em manifestações de índole cultural, ao que parece estimulado pela própria família. E estivera presente, nessa reunião nos Fenianos! Além de dispor de uma memória prodigiosa, ele escolhera e designara o seu caminho cultural e intelectual desde os alvores da infância.
Os insultos, as calúnias, os enxovalhos de que era objecto, por anónimos desprezíveis, não molestavam a magnitude do seu espírito, nem alteravam o seu comportamento social. Encolhia os ombros, e, numa ocasião em que lhe elogiei a paciência, que eu não tinha, ele disse: "Pobres deles, aqui na terra, mas, se calhar, vão atingir o reino dos céus." Enorme poeta, certamente um dos maiores da nossa lírica, era, por igual, um ensaísta invulgar, e um dos seus livros, "Contra Bernardo Soares", de inspiração proustiana ("Contre Sainte-Beuve"), está entre os melhores de especulação intelectual entre nós editado.
Nada parecia afectar a natureza de Vasco Graça Moura, mesmo em situações absolutamente injustas, como aquela em que foi destituído das funções da Comissão dos Descobrimentos, onde realizara um trabalho notável, por ímpar e originalíssimo. Foi António Guterres, então primeiro-ministro, quem o pôs na rua, sob a alegação de "falta de confiança política"! Acontece que o Vasco, no uso das suas prerrogativas de cronista político, criticara Guterres. E eu, na rádio e na televisão, verberei Guterres, pela sordidez do acto, o que me valeu umas chatices pouco agradáveis.
O Vasco agradeceu com uma carta em que a nobreza do homem (aliás, tantas e tantas vezes demonstrada) uma vez mais se expunha. Eu estava, constantemente, em desacordo com o que ele escrevia, e, amiúde, irritava-me o tom displicente usado para pleitear as suas causas. Mas lia-o. Ele fazia parte dos meus interesses e das minhas curiosidades intelectuais e éticas. A morte deste português invulgar é uma perda sem emenda. Invulgar pela inteligência, pela cultura, pela civilidade, pelo que nos ensinou e, até, pela coerência das suas escolhas e opções. Mas, também, pela coragem de enfrentar a doença medonha com a dignidade dos que sabem da inevitabilidade irremediável. Um homem que o foi, inteiro e digno, até ao remate final dos seus dias.
Adeus.
b.bastos@netcabo.pt