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Uma afronta ao sector da saúde?

É absolutamente irrefutável a evidência de que o nutricionismo é imprescindível para a prevenção e tratamento de doenças e para a manutenção de uma vida saudável.

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A4 de Março deste ano o Tribunal de Justiça da UE (TJUE), em resposta a dúvidas suscitadas por um tribunal arbitral português, veio pôr em causa a aplicação da isenção de IVA a consultas de nutricionismo prestadas por um ginásio.

O entendimento em questão do TJUE, para além de dúbio e, em alguns excertos, paradoxal e antagónico, pode configurar-se como uma caixa de pandora. Porquê? Porque abre espaço a interpretações demasiado amplas e nebulosas, que podem colocar em risco múltiplas actividades directa e indirectamente ligadas ao sector da saúde em todos os 27 Estados-membros. As consultas de nutricionismo são apenas um preâmbulo para o que pode vir a seguir, isto, claro está, se não imperarem as mais elementares regras do bom senso, algo aparentemente tão simples mas que por vezes tanto escasseia.

O TJUE sempre afirmou, e bem, que para se aplicar a isenção do IVA no sector da saúde é necessário estarmos perante profissionais qualificados e uma prestação de serviços que vise impedir, evitar ou prevenir uma doença, uma lesão ou anomalias de saúde, ou detectar doenças latentes ou incipientes - finalidade terapêutica da prestação. Dado na situação em apreço muitas das consultas de nutricionismo acabarem por não ser realizadas devido à não comparência dos utentes, de acordo com a Advogada Geral Juliane Kokott, no contexto de um acompanhamento nutricional pago, mas não utilizado, afigura-se “bastante duvidoso” que a prestação de serviços tenha uma finalidade terapêutica.

Mas o Tribunal vai mais longe. Começa por notar que um serviço de acompanhamento nutricional prestado no âmbito de uma instituição desportiva pode, a médio e a longo prazo ou considerado em termos amplos, ser um instrumento de prevenção de certas doenças, como a obesidade. Todavia, nota que cumpre assinalar que o mesmo se aplica à própria prática desportiva, cujo papel é reconhecido, a título de exemplo, para limitar a ocorrência de doenças cardiovasculares, concluindo que “Tal serviço apresenta, portanto, em princípio, uma finalidade sanitária, mas não, ou não necessariamente, uma finalidade terapêutica.”

Assim, conclui que, “Por conseguinte, na falta de indicação de que é prestado para fins de prevenção, diagnóstico, tratamento de uma doença e regeneração da saúde, e, portanto, com uma finalidade terapêutica, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, um serviço de acompanhamento nutricional, como o prestado no processo principal, não é abrangido pela isenção prevista no artigo 132.°, n.° 1, alínea c), da Directiva IVA, de modo que está, em princípio, sujeito a IVA.”

As afirmações da Advogada Geral e as conclusões do TJUE no referido processo, que nos parecem ir mais além daquelas, são particularmente preocupantes. Em pleno século XXI alguém tem dúvidas da relevância das consultas de nutrição como um factor imprescindível para prevenir e combater as mais nocivas doenças que afectam a humanidade, como o cancro, a obesidade, as doenças cardio vasculares, a diabetes e, mais recentemente, a covid-19?

Se dúvidas existissem, a Organização Mundial da Saúde, a OCDE, a UE e, entre nós, as mais diversas acções e planos dos Governos, nomeadamente o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da Direcção-Geral da Saúde de 2017, não deixariam margem para qualquer dúvida – é impossível falar numa vida saudável sem mencionar a alimentação, uma vez que hábitos alimentares saudáveis são indispensáveis para a prevenção ou o surgimento de doenças. Ou seja, é absolutamente irrefutável a evidência de que o nutricionismo é imprescindível para a prevenção e tratamento de doenças e para a manutenção de uma vida saudável.

Sabemos, por exemplo, que recentemente a pandemia, associada ao piorar dos hábitos alimentares e da pouca actividade física, levou a um aumento do peso da população que, uma vez mais, tem vindo a pôr o nutricionismo na ordem do dia quer na óptica da prevenção quer do tratamento.

Não poderemos, pois, partir do pressuposto, perante consultas de nutricionismo, que estamos perante um “qualquer serviço efectuado no âmbito do exercício de uma profissão médica ou paramédica, que tenha por efeito, mesmo de forma muito indirecta ou longínqua, prevenir certas patologias”, com “uma ligação incerta com uma patologia, sem risco concreto de prejuízo para a saúde”.

Acresce que o fundamento de o utente não comparecer à consulta para não se aplicar a isenção não colhe, dado que, de acordo com o TJUE, considera-se que uma prestação é realizada para efeitos de IVA a partir do momento em que é disponibilizada ao seu utente, independentemente de este a vir efectivamente a consumir ou não.

Entre nós esperemos que, desde logo, a Autoridade Tributária, tenha a sensatez de, em especial no tocante às consultas de nutrição, não concluir a priori que não há ligação com a saúde e exigir comprovativos médicos caso a caso. Tal situação, por motivos óbvios, seria incomportável e poria em causa a mera prevenção de doenças e, por outro lado, esperamos que não se caia na tentação de generalizar a todos os casos do sector da saúde um inovador conceito de prevenção da saúde que poderá resultar de uma leitura precipitada deste Acórdão. In extremis, poderíamos chegar à caricata situação de uma vacina para a covid-19, como mero acto de prevenção, poder não cair no conceito de saúde deixando de ser isenta de IVA, isto sem falar de análises clínicas preventivas...

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