Opinião
Os dois Fernandos, meus amigos
Com maior ou menor aproximação sabíamos uns dos outros, os tempos foram indo, «Olá! Como estás?», a morte e o assombro, a velhice e o desgosto de um 25 de Abril que fora assassinado pelos predadores do costume.
Fernando Tordo, 65 anos, compositor, poeta, intérprete, emigrou para o Brasil, mais propriamente para o Recife. Não tinha trabalho no país que o viu nascer e, segundo o "Diário de Notícias", é um dos oito mil "idosos" que, nos últimos dois anos, foram embora daqui. "Emigrem! Emigrem!", exclamava o untuosamente inesquecível Miguel Relvas, logo secundado, na ignóbil recomendação, pelo dr. Pedro Passos Coelho. A debandada é alucinante. Mil e quatrocentos jovens, rapazes e raparigas, abandonaram Portugal porque Portugal os abandonou. "O meu País não me quer", dizia um cartaz, nas mãos de uma miúda, fotografada pelo "Público", e acerca da qual escrevi, no Negócios, uma crónica que circulou pela net.
Estes casos não só atingem a indignação como o coração das pessoas, que vêem que a falta de respeito, a ausência de consideração e o desdém como política atingiram níveis surpreendentes.
Tordo é um dos nomes mais importantes da cultura portuguesa, conheço-o e somos amigos há um ror de anos. Ele viveu, longo tempo, na Rua da Saudade, ao Castelo, no mesmo prédio do Ary dos Santos, seu parceiro inesquecível, e onde também viveu Alexandre O'Neill. Na mesma rua, em épocas anteriores, lá morou José Rodrigues Miguéis, o extraordinário romancista de "A Escola do Paraíso". Mais abaixo, em Alfama, habitei, durante 32 anos, um rés-do-chão, e costumávamo-nos encontrar, o Manuel Cavaco, eu e o Tordo, no Cantador Mor, casa de canto, comida e bebida de que o nosso amigo era proprietário, no Largo do Contador Mor. Com o Ary víamo-nos, eu e a minha família, numa leitaria próxima, e eram sempre conversas agradáveis, irónicas com o Ary, nimbadas pela amizade entre todos. "Temos de nos aguentar à bronca!", uma frase que corria o grupo, como escudo e defesa dos tempos que começavam a correr mal.
Com maior ou menor aproximação, sabíamos uns dos outros, os tempos foram indo, "Olá! Como estás?", a morte e o assombro, a velhice e o desgosto de um 25 de Abril que fora assassinado pelos predadores do costume, de que estes, os de agora, são herdeiros ainda mais vorazes.
A decisão do Fernando Tordo em ir-se embora surpreendeu-me, apesar de tudo. Um dos quatro filhos, o João, escreveu na net uma comovente carta de despedida, não ocultando os insultos e as calúnias de que pai é alvo, por energúmenos em embrião, que se escondem na vileza do anonimato. O homem que deixa a pátria bem-amada é um português de lei e um dos homens mais irrepreensivelmente sérios e decentes que conheço. Um "idoso" (detesto a palavra, propendo para "velho") que marcou a sua época com talento, coragem e dignidade, sem nunca desistir do propósito de ser feliz. Lá vai ele, o meu amigo.
Esta notícia pegou-me de supetão quando acabava de ler o segundo volume de "Crónica do País Relativo - Portugal, minha Questão", de Fernando Paulouro Neves, um dos grandes jornalistas do nosso tempo, e que tem a mesma idade do Tordo, por sinal igualmente amigo dos que nomeei. Este Fernando, sobrinho de António Paulouro, o fundador do "Jornal do Fundão", onde tem escrito a nata da inteligência portuguesa, tirocinou naquele semanário das Beiras, e foi seu director, continuando o notável trabalho do tio António.
Fernando Paulouro escreve num português de lei e as suas crónicas são exemplos do que de melhor possui a grande prosa portuguesa. Este Fernando também já não é director do "Jornal do Fundão", saído, feito sair, se assim o quiserem, por quem tem manifesta ignorância do que é um jornal. Também eu fui arrastado pela onda, e o Fernando Paulouro conta o episódio sórdido em uma pequena crónica. Devo dizer que fui colaborador do nobre periódico desde os meus vinte e poucos anos, e nas suas colunas escrevi alguns textos contra, que fariam torcer o nariz aos senhores a mando. Como agora.
Ao ler este belíssimo livro e ao fazer as conexões entre a vida destes dois Fernandos, meus amigos queridos, posso chegar à conclusão de que ambos, pela grandeza, pela violência das agressões têm sido exilados do interior ilustrando, de certa forma, a epítome do poeta maior que foi Daniel Filipe: "Pátria - Lugar de Exílio."
b.bastos@netcabo.pt