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25 de Janeiro de 2015 às 19:30

Famílias infelizes

O conde russo Lev Tolstoy, o maior romancista de sempre para a inglesa Virginia Woolf, começou a sua monumental obra de 1877 "Anna Karenina" com a frase "as famílias felizes são todas iguais; cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira".

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Embora Tolstoy não tenha, entre os seus muitos feitos, sucesso empresarial, tendo preferido, a par das letras e de uma carreira militar na juventude, investir na instrução dos seus servos, o inspirado arranque de "Anna Karenina" serve quase tão bem às empresas familiares quanto às famílias. 

 

Sem entrar em tentativas de definição geral de "empresa familiar", tomemos para hoje a definição de "empresa familiar" como aquela em que uma família, organizada melhor ou pior para tal, detém uma participação geradora de influência sobre a condução dos negócios sociais. Nesta acepção, a maior parte das grandes empresas da Europa Continental são familiares, e, além disso, as famílias mais ricas detêm uma parte significativa (20 a 30%) da capitalização bolsista do mercado doméstico. Nem um nem outro efeito ocorrem quer nos Estados Unidos quer no Reino Unido. É frequente remeter a explicação para esta dissemelhança, amplamente documentada na literatura financeira, para mal definidas "razões culturais", mas é relativamente fácil produzir explicações melhores.

 

Na origem de uma empresa está sempre um fundador, completamente "a solo" ou com pouca companhia. Por definição, os gestores profissionais de empresas não as fundam, administram-nas por conta dos donos. Ensinamos a fazê-lo nas Escolas de Gestão. Assim, quer na Europa Continental, quer nos Estados Unidos, quer no Reino Unido, a larga maioria das empresas começa por ser, na nossa definição de hoje, "familiares". Depois, algumas têm oportunidades de crescimento e aproveitam-nas, outras não as têm ou, tendo-as, não as potenciam. Se crescerem significativamente, chegarão a um ponto onde necessitam de apelar aos aforradores anónimos para se capitalizar, isto é, onde precisam de abrir o seu capital nos mercados de capitais. Ora os mercados de capitais das social-democracias europeias continentais desenvolveram-se em regimes só genericamente caracterizáveis como defensores da propriedade privada, com governos com extensa intervenção na economia, ênfase em aspectos redistributivos, e inclinação para defender os interesses dos empregados em detrimento dos capitalistas quando estes entram em conflito. Nestes regimes, há menos interesse na maximização não restringida da riqueza dos accionistas, e portanto menos investimento no desenvolvimento de mecanismos de protecção destes. Sem surpresa, este estado de coisas tende a preservar a natureza familiar das empresas como forma de organização interessante para pequenos accionistas. De facto, o grande problema de governação societária nos Estados Unidos - e no Reino Unido - é a gestão do conflito de interesses entre os muitos accionistas dispersos que detêm a propriedade das empresas e a tecnocracia ilustrada que as administra por conta daqueles. Na Europa Continental, a solução para este problema é o predomínio de accionistas controladores, largamente investidos nas empresas e, por isso, controladores não só do seu capital investido como dos gestores que dele cuidam no dia-a-dia, muitas vezes os próprios como nas empresas capitalistas clássicas. A provisão de uma solução para este problema é, salvo melhor opinião, o factor comum a todas as empresas familiares de sucesso - também as empresas familiares prósperas são, à la Tolstoy, todas iguais no sentido em que o são pela mesma razão essencial.

 

Como há famílias infelizes, também há empresas familiares que, não obstante trazerem em si a raiz da prosperidade, falham. Também aqui à la Tolstoy, cada uma falha à sua maneira - podem revelar menos encanto com a maximização dos lucros relativamente a empresas de capital muito disperso, podem ser dadas ao nepotismo, preferindo gestores da família, ainda que menos dotados, a soberbos gestores profissionais sem os laços familiares relevantes, podem perpetuar em funções gestores membros da família que tenham revelado grande competência, mesmo quando a idade ou outras restrições físicas ou comportamentais sugeririam renovação, e, mais malevolamente, podem dedicar-se a transacções não "arms length" com entidades relacionadas com a família, ou recompensar excessivamente os contributos de membros da família. Quando tal acontece, resolver adequada e tempestivamente estes problemas é mais difícil do que numa sociedade de capital disperso, pois não há "takeovers" hostis nem decisões sábias de assembleias-gerais que eliminem o problema. A infelicidade, quando se vislumbra, veio para ficar.

 

Professor Associado, IBS

ISCTE Business School e INDEG-IUL 

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