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14 de Fevereiro de 2017 às 19:45

Carta aberta ao ministro da Agricultura

As autarquias vão "atirar-se" (como sempre o fizeram, aliás, quando puderam) a estas acções de florestação e reflorestação como fonte de receita (taxas injustificadas e desproporcionadas).

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Caro senhor ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural

 

Acabei de ler o seu artigo no Público do dia 14 de Fevereiro e confesso-lhe que fiquei bastante desiludido e com um gosto amargo.

 

Não pelo teor geral da defesa convicta da "sua" reforma do sector florestal (que tem muitos pontos positivos, reconheço), mas pela decidida manutenção - no final de um participado período de discussão pública - e insistência em duas medidas que, como lhe referi pessoalmente e em público, e que nunca vi realmente contraditadas, são lesivas, quiçá mortais, para um importantíssimo segmento da economia silvo-industrial e do país.

 

Também não gostei, mas compreendo-o à luz da política… (o que não é bom para a política), que todas as críticas que leu na comunicação social tenham sido fruto de "deficiente percepção" ou de "mera luta política".

 

Porque não me revejo em nenhuma delas e porque decidi só expressar opinião em público sobre este assunto se a tal fosse "obrigado" (o que julgo ser o caso), atrevo-me a trazer-lhe de novo (e pela última vez) as minhas preocupações:

 

1 - A municipalização da política florestal nacional (de que depende um vastíssimo leque de bens e serviços de nível nacional e não regional ou municipal)

 

- As autarquias não têm meios técnicos/humanos para procederem ao licenciamento responsável de florestações e reflorestações com eucalipto e não existe justificação técnica (bem antes pelo contrário) para que as florestações e reflorestações com outras espécies não sejam igualmente sujeitas a licenciamento (porque é normalmente no acto da preparação do terreno que se verificam as mais bárbaras e irreversíveis acções danosas sobre o ambiente, o solo e a biodiversidade… independentemente da espécie que se vai depois plantar);

 

- As autarquias vão "atirar-se" (como sempre o fizeram, aliás, quando puderam) a estas acções de florestação e reflorestação como fonte de receita (taxas injustificadas e desproporcionadas) e/ou vão usar as taxas como forma de proibição de coisas legais de que não gostem (recordo que em vários casos no passado não muito distante as taxas para emissão de meros pareceres excederam o próprio valor da terra!!!). Não se trata de especulação; está tudo largamente documentado e ao seu dispor;

 

- Ao passar esta competência para as autarquias (em vez da fiscalização de projectos aprovados e documentados que "qualquer um" pode fazer) o senhor ministro vai matar o que resta da Autoridade Florestal Nacional fora de Lisboa… quando a nossa floresta precisa cada vez mais de interlocutores técnicos sabedores e estáveis.

 

2 - A proibição da plantação e replantação de eucaliptos (pois é disso que se trata - como diz inequivocamente o artigo primeiro do projecto de diploma - já que tudo o mais são "excepções")  

 

- Esta proibição resulta - como ambos sabemos - do acordo de incidência parlamentar com os Verdes… e tudo o mais é "contorcionismo" (a ausência histórica de qualquer medida afim nos documentos do PS, nomeadamente no seu programa eleitoral, não deixa margem para dúvidas e não se percebe porque é que isso não é assumido);

 

- Ora há acordos - e os media não se fartam hoje de falar num deles - escritos ou não que a realidade impõe que não podem ser integralmente respeitados;

 

- É aí que se usa a coragem e a razão… assumindo os custos de eventuais erros anteriores de cálculo;

 

- Esta proibição, vai ser economicamente desastrosa para o país e não tem qualquer justificação técnica, a ponto de o prólogo do proposto diploma nem sequer abordar as razões desta proibição;

 

- Apontar como "razão política" a decisão "do Governo anterior aquando da revisão da Estratégia Nacional para as Florestas (ENF)" é um mau pretexto que algum seu colaborador lhe deu e que não vai resistir a uma discussão séria: as metas para 2030 já tinham sido plasmadas na ENF (aprovada num dia 21 de Março por Resolução do Conselho Ministros (RCM) de um governo de que fazia parte), nunca foram concebidas nem usadas como "tecto instantâneo" (até porque lhe faltaria o fundamento) e um RCM - como ambos sabemos - não tem força de lei, "apenas" se destinando a vincular a Administração Pública numa determinada direcção. E neste caso, a direcção era a eliminação progressiva de plantações ecologicamente desajustadas e o estímulo de novas plantações ou a melhoria das existentes que pudessem apresentar produtividades "decentes" (com medidas atempadas como a agora anunciada de apoio ao aumento da produtividade). Assim se chegaria às metas…

 

- Acresce que basta "ler" o Inventário Florestal Nacional para se perceber que a oferta interna de eucalipto tende a descer ainda mais no curto prazo (fruto dos fogos, da baixa produtividade - acrescida pelo não renovo das "boas" plantações hoje caducas - e em resultado do regresso aos cortes antecipados… que estão proibidos e que ninguém fiscaliza),  sendo pois garantido que as importações desta matéria-prima vão aumentar significativamente em volume e, muito provavelmente, em preço, com a concomitante perda irreversível da competitividade dos produtos papeleiros portugueses. Numa conjuntura e num país que carece de aumentar as suas exportações e de melhorar o seu saldo da balança comercial, parece pois existir aqui algo de danoso e contraditório para a economia do país;

 

- E não se diga com inocência que "se acrescermos 2 ou 2,5 metros cúbicos por hectare e por ano à produtividade dos 835 mil hectares de eucalipto teremos mais 2 milhões de metros cúbicos por ano que é o que hoje falta à indústria". E quantos anos demora essa via? Se beneficiarmos 20 mil hectares por ano (o número não é nada pequeno)… são só 40 anos… e a melhoria não acontece no ano da intervenção. E quem acredita que a indústria vai manter a sua competitividade nesse período e com esse horizonte e receita?  

 

Dir-me-á, com toda a razão, o senhor ministro (sabe - e não escondo - que nutro por si sentimentos de amizade e respeito), que pareço estar mais preocupado que a dita fileira silvo-industrial que, salvo intervenções pontuais, não veio a público manifestar estes tão dramáticos receios.

 

Pois devo dizer-lhe que sou o primeiro a estar perplexo - há meses - por tal "silêncio"… e para tal só encontro uma de duas explicações: i) ou o primeiro-ministro, pessoa que estimo, lhes prometeu (sem assinar) que esta lei não vai ser cumprida e eles acreditaram; ou ii) os capitães da indústria portuguesa andam à procura de compradores estrangeiros (exactamente o que eu faria se comparassem a minha matéria-prima a uma planta da droga, cuja plantação passa a ser proibida) e não lhes convém mostrar o que aí vem… daí o foco mediático nos bons resultados e nos investimentos … de aumento de capacidade (alguns) que o Estado - o mesmo que lhes retira e encarece a matéria-prima - vai apoiar com dinheiros ditos "públicos".

 

Espero bem que não tenha razão, para bem de todos nós.

 

Ao seu dispor.

 

Antigo secretário de Estado das Florestas

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