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Carlos Almeida Andrade - Economista 31 de Março de 2016 às 20:25

Um novo ciclo…?

O fim do período formal do programa de assistência financeira (i.e. a "saída da troika") e o início de um novo ciclo político, após as eleições legislativas e presidenciais, parece ter dado lugar - à superfície - a um ambiente de menor crispação social e política, face ao que vivemos nos últimos anos, a partir de 2011.

O Orçamento do Estado para 2016 foi aprovado no Parlamento, pela primeira vez com o apoio dos partidos mais à esquerda, e assenta numa mensagem optimista do ponto de vista do crescimento. Ao mesmo tempo, diversas medidas anunciadas no âmbito do programa de ajustamento económico e financeiro (em geral, com impacto restritivo) têm vindo a ser revertidas. Neste contexto, é interessante constatar a subida da maioria dos indicadores de sentimento em Março - em particular nos consumidores, no comércio a retalho, nos serviços e na construção - curiosamente em contraciclo com o observado no conjunto da Zona Euro.

 

Em si mesmo, não existe nada de mal - pelo contrário - com um ambiente político e social menos crispado e com uma melhoria dos níveis de confiança dos agentes económicos. Tudo isso é, aliás, desejável. Nos últimos anos, o país (em casa, no trabalho, no café, na comunicação social, na rua, etc.) quase não fez mais do que analisar, debater e viver até à exaustão os problemas económicos, sociais e políticos que nos limitam. Seria bom podermos simplesmente contar com um bom funcionamento das estruturas e instituições económicas, sociais e políticas e dedicarmo-nos "simplesmente" a viver e a melhorar as nossas vidas e as daqueles à nossa volta, investindo na família, na comunidade, no trabalho, nos amigos, na cultura, etc.

 

Contudo, no momento actual, existem pelo menos dois problemas em nos deixarmos adormecer ou embalar por uma retórica de "normalização" do ambiente económico e por um grande optimismo em relação ao crescimento da actividade.

 

Por um lado, é um pouco chocante que nos esqueçamos de que a reversão das medidas restritivas e impopulares (desde a reposição de salários à recuperação de feriados) é possível agora porque o país fez, nos últimos anos, o suficiente para sair de uma situação de emergência, que nos impôs essas medidas. Essa reversão não depende apenas de uma opção de política. Fingir que não é assim significa fingir que não vivemos essa situação de emergência, aumentando por isso a probabilidade de voltarmos a ela. A existir uma reversão de políticas, todo o cuidado é pouco e todo o gradualismo seria prudente. Como seria também aconselhável a consideração de um quadro macroeconómico mais prudente no Orçamento de 2016, dados todos os riscos que a economia mundial enfrenta.

 

O outro problema é que a realidade não mudou e os problemas não desapareceram, ainda que falemos menos deles. Se é bom ter uma atitude positiva e construtiva sobre as perspectivas económicas, já é imprudente vivermos num optimismo deslocado da realidade. Face à dimensão dos desafios que a economia portuguesa enfrenta, as medidas conjunturais e estruturais anunciadas ou tentadas nos últimos anos deveriam ser vistas apenas como o início de um longo (e, sem dúvida, difícil) processo de adaptação a uma realidade global completamente diferente e mais adversa. O risco que vivemos num ambiente de "reposição", "normalização" e optimismo deslocado é o de voltarmos a cair em erros do passado, em que o custo de alguma "pacificação" à superfície passa, por exemplo, pela cristalização e perpetuação do poder de grupos de interesse (por exemplo, nos transportes ou na educação), que impedem a economia portuguesa de se adaptar devidamente às exigências na nova economia global.

 

Como vai a economia portuguesa crescer sustentadamente e equilibrar as contas públicas com uma taxa de fertilidade de 1,2%, um rácio de dependência de idosos (para já) de 30% e um crescimento do PIB potencial apenas marginalmente positivo, sem tomar medidas estruturais sobre o sistema de pensões? Como vai a economia crescer sem uma base de capital doméstica para sustentar o investimento e sem o acesso à liquidez fácil e barata de outros tempos? Como vai a economia crescer com "stocks" de dívida pública e privada de cerca de 130% e 200% do PIB, respectivamente (e uma dívida externa líquida de 102% do PIB), sem tomar medidas que melhorem estruturalmente a produtividade e a competitividade? Como se vai adaptar a força de trabalho à tendência (muito mais rápida do que se pensa) de automatização da actividade produtiva, não só na indústria mas, crescentemente, também nos serviços, sem uma exigência maior na educação? Como vai Portugal atrair investimento no contexto da tendência estrutural de urbanização, crescimento da classe média e maior atractividade dos investimentos em economias emergentes? Dificilmente haverá respostas a estes desafios sem processos longos e difíceis. Não os deveríamos ignorar.

 

Economista

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