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Quem diz que Dijsselbloem é um radical não percebeu a crise do euro

Este bate-boca entre um político do Norte e políticos do Sul lembra-nos que o fosso político, cultural e social entre Norte e Sul continua aberto - e que, num contexto crescente de populismos nacionalistas, é uma das principais ameaças que pairam sobre a moeda única.

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Em Abril de 2011, na véspera do resgate a Portugal, Dominique Strauss-Kahn ensaiou uma ameaça à Comissão Europeia: o FMI não estava disponível para participar no programa português se não houvesse também condições impostas à própria política económica da Zona Euro. O alemão Wolfgang Schäuble pensou que Strauss-Kahn estava a fazer "bluff" - e estava. O FMI acabou por entrar na troika e emprestar a sua experiência e 26 mil milhões de euros a Portugal. O episódio, contado em "Laid Low", livro sobre os bastidores do FMI durante a crise do euro, é uma de muitas passagens em que se percebe a resistência da política europeia em propiciar um "ajustamento" menos duro aos países mais frágeis. A resistência explica-se com muitos factores - um deles é a visão moralista do "Norte" da Europa sobre o "Sul".

 

Esta visão no "Norte", parte preconceito, parte realidade, não é exclusiva dos políticos, muito menos dos da extrema-direita: é uma visão que, no caso do euro, dura desde os primórdios da sua construção e é partilhada pela sociedade e respectivas elites. Numa comparação simplista, é o mesmo tipo de percepção que leva os portugueses no continente a criticarem o resgate à Madeira, que identificam com o jardinismo despesista. 

 

Seja na Alemanha, seja na Holanda - progressista como os nórdicos nas políticas sociais e germânica nas finanças públicas - este moralismo era um risco para os políticos que acelerassem uma abordagem global à crise em vez de uma acção punitiva caso a caso. Por isso, os socialistas alemães do SPD, mesmo enquanto pediam mais estímulos económicos no pico da crise do euro, nunca desafiaram a política de Merkel. E também por isso os socialistas holandeses, já cientes da ameaça populista à direita, foram sempre dos mais ortodoxos na crise: porque acreditam nessa ortodoxia e porque são eleitos por pessoas que acreditam.

 

Eis-nos, então, na presença do socialista Jeroen Dijsselbloem e da tirada sobre "aguardente e mulheres". O estilo é sem dúvida inaceitável e merecedor de repúdio. E a narrativa do "Norte solidário" com o "Sul gastador" é muito incompleta: uma crise de dívida envolve sempre responsabilidade dos credores e na crise do euro há culpa suficiente para distribuir por todos. Mas a narrativa não equivale a "tiques de um novo racismo" (Carlos César), nem Dijsselbloem é um "pseudo-socialista" (Sérgio Sousa Pinto), um "lobo do populismo perigoso com pele de cordeiro" (António Costa) que "ainda não percebeu o que foi a crise do euro" (Augusto Santos Silva) - o holandês é um socialista que conhece bem o custo político daquilo que foi e é preciso fazer pelo euro. E, mesmo enquanto reprovamos o estilo, é difícil contestar a mensagem de fundo: a "solidariedade" responde-se com responsabilidade.

 

Se quisermos ser optimistas podemos furar a retórica Norte/Sul e ver como, na realidade, a política vai trabalhando para a estabilidade da Zona Euro: Dijsselbloem fala para os anseios dos eleitorados do Norte, mas a Comissão vai relaxando com países como Portugal e o BCE oferece um estímulo sem precedentes; António Costa fala contra o austeritário moralista do Norte, mas vai "além de Bruxelas" e bate uma meta de défice. Para já, isto vai chegando. Mas, se quisermos ser realistas, este bate-boca entre um político do Norte e políticos do Sul lembra-nos que o fosso político, cultural e social entre Norte e Sul continua aberto - e que, num contexto crescente de populismos nacionalistas, é uma das principais ameaças que pairam sobre a moeda única.

 

Jornalista da revista SÁBADO

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