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Delírios paradisíacos

A sociedade trata as transferências para os paraísos fiscais com um entusiasmo que os inspectores do Fisco não partilham.

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As audições a dois ex-directores-gerais da Autoridade Tributária confirmam o que está escrito e implícito em vários relatórios públicos: estas transferências da jurisdição portuguesa para offshore estão longe de ser uma prioridade quer para a inspecção fiscal, quer para as tutelas políticas. Basta ler os planos anuais de actividades da Autoridade Tributária: o de 2016, já com o actual Governo, não difere do de 2015 na ausência de foco sobre o controlo inspectivo dos valores declarados no modelo 38, dos quais apenas uma amostra é seleccionada para análise mais profunda.

Há incentivos que explicam este comportamento. O principal: o Fisco inspeciona onde sabe que pode recuperar mais imposto perdido para a fraude e a evasão. O Fisco não inspeciona por graus de imoralidade da fuga, hierarquizados e convencionados seja por quem for, na maior parte das vezes com desconhecimento sobre a matéria. Esta escolha, da máquina fiscal e da política, é ainda mais racional à luz do contexto de recursos limitados na Autoridade Tributária, do vastíssimo mar de informação em que os técnicos do Fisco têm de navegar e da forte pressão sobre as finanças públicas.

A prioridade dada a outras declarações e esquemas de fraude significou em 2015 quase 600 milhões de euros de receita recuperada em IVA, o imposto rei na receita e na evasão. O ano em que a inspecção ao modelo 38 (muitas vezes morosa como foi explicado no Parlamento) rendeu mais foi 2012: pouco mais de 30 milhões.

Os offshore são um problema grave para as finanças públicas. Por mais justificações que ouça só consigo ver duas razões para a sua existência: fuga ao fisco e opacidade sobre os fluxos financeiros. O facto de existir liberdade de circulação de capitais não significa que aprovemos do ponto de vista ético este tipo de instrumento - mas o facto de não gostarmos deles também não significa, como lembrou o ex-director-geral Azevedo Pereira, que pressionemos em favor de um desvio de recursos para um tipo de inspecção que, ao não render tanto no combate à fraude, prejudica o erário público e beneficia muitos infractores (incluindo "empresários" e "ricos"). Sobre as offshore, o que preocupa as autoridades tributárias não é tanto a inspecção do dinheiro que sai legalmente da sua jurisdição para um offshore, mas o que é transferido entre offshore para fugir à tributação - e aqui já vemos mais foco nos planos e relatórios oficiais.

Com isto não se quer desvalorizar o facto, ainda por apurar pelas autoridades, que fez com que cerca de 10 mil milhões de euros transferidos para offshore se perdessem dentro do Fisco. Sobre este caso há elementos e afirmações de dirigentes políticos e administrativos que permitem escolher especulações variadas, mas a simples dúvida é suficiente para que a Inspecção-Geral das Finanças e o Parlamento investiguem, ao mesmo tempo que o Fisco apura quanto imposto poderá ter ficado por cobrar. No final pode ser detectado um esquema de corrupção - ou, na hipótese mais benigna do "erro informático", pode haver uma reflexão sobre o controlo e a manutenção dos meios informáticos do Fisco.

Mas convém não confundir o dinheiro que saiu com imposto automaticamente perdido, não hierarquizar uma escala de moralidade na fuga aos impostos, não fingir que o Fisco pode ir a todas - e não confundir um inimigo de um offshore com um defensor de uma boa política pública fiscal.
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