Opinião
A maior história na economia portuguesa
A influência cada vez maior dos grandes fundos de "private equity", que agem sobretudo como abutres, é uma das grandes histórias em curso na economia portuguesa. Entre benefícios e custos, a presença destes fundos, tal como dos investidores chineses, demonstra as marcas duradouras deixadas pela crise.
Há duas grandes histórias em curso, duas novidades, na profunda recomposição do poder económico em Portugal a seguir à crise.
A primeira é a importância conquistada pela China. Sobre esta vai-se prestando alguma atenção - mais pelos media do que pela política ou pela academia - embora ainda escassa, tendo em conta a relevância estratégica dos activos comprados e a relação, directa ou indirecta, do capital chinês com o estado controlado pelo Partido Comunista Chinês.
A segunda é a tomada massiva de propriedade por grandes fundos rnacionais de "private equity" e hedge funds. São os nomes exóticos mencionados de forma dispersa e quase diária nas notícias: Apollo, Lone Star, Bain, KKR, Blackstone, Elliott. Sobre esta história, tão relevante como a chinesa, o grau de atenção pública e de análise é ainda mais curto.
Os fundos já investiram desde 2010 mais de 21 mil milhões de euros em aquisições no país, segundo dados a consultora TTR citados na Sábado desta semana. É mais do dobro do investido pelos chineses. Chineses e fundos aproveitaram a mesma oportunidade para entrarem em Portugal - os saldos deixados pela crise e pela má gestão exposta pela crise - mas as semelhanças terminam aí.
As empresas chinesas investem em sectores estratégicos e empresas já rentáveis, cooptam a elite local, querem ganhar conhecimento técnico e canais de entrada na Europa para os seus produtos e, last but not the least, encaixam nos desígnios geopolíticos de Pequim. Já os fundos, que são sobretudo norte-americanos, obedecem a uma lógica mais simples: ganhar dinheiro depressa. Compram a desconto activos (estratégicos ou não) em dificuldades e também passivos (dívidas), contratam portugueses ou estrangeiros para resolverem rapidamente os maiores problemas nesses negócios, vendem mais caro a seguir.
O papel de abutre - a designação eufemística é "investidor em distressed assets"- vale a estes fundos uma imagem muito pior do que a gozada pelos chineses. Um académico espanhol ouvido pelo Financial Times no início deste ano descreveu-os como a face do "capitalismo com esteróides": os lucros correm em paralelo com o custo social das medidas duras, os seus fundadores estão nas listas de bilionários. Despedem, despejam, privilegiam o curto prazo, encomendam a cobrança intensiva de dívidas (vendidas a desconto pelos bancos e cobradas sem regulação).
Mas estes custos, reais e pouco escrutinados, não contam a história toda. Portugal hoje está "na moda", mas estes fundos - e os chineses - foram os primeiros e únicos a investir num país a sair de uma crise grave e ainda com um problema de imagem externa. Em vários casos a sua entrada nas empresas acelerou a resolução de problemas que andavam a ser empurrados com a barriga, noutros trouxeram capacidade de gestão (ao contrário dos chineses, que aproveitam a que existe) ou pressão sobre a existente (como na EDP).
Estas vantagens são o que justifica o acolhimento discretamente caloroso dispensado pelo Governo a investidores impopulares. A influência massiva destes fundos e dos chineses - actores que surgem sempre em concorrência entre si e nunca com grupos portugueses - mostra as marcas duradouras deixadas pela última crise: uma economia portuguesa descapitalizada e a recuperar do vazio deixado pelo colapso de uma elite empresarial sobre-endividada e má gestora. Talvez isso explique o silêncio de boa parte dessa elite vendedora perante a revolução no poder económico em Portugal.
Um cenário muito cinzento para os próximos quatro anos
É certo que previsões a quatro anos não são ciência infalível - estas não contam naturalmente com medidas de política que ainda não foram tomadas -, mas neste caso é razoável assumir que os riscos até são no sentido descendente. Vamos já num ciclo longo de recuperação económica e não é de prever que haja mais quatro anos de vento a favor (os sinais de travagem lá fora são já visíveis). Seja como for, as previsões do Conselho das Finanças Públicas para a economia portuguesa até 2023 apontam para um cenário deprimente. É difícil aceitar um discurso político optimista sobre o futuro com base em valores parecidos com estes - e no argumento de que estamos a crescer "acima da média europeia".