Opinião
Portugal. Dois países, um sistema
Os partidos estão a comportar-se como aqueles grupos de amigos que no meio do confinamento combinam jogar às cartas no café e entram às escuras pela porta dos fundos. Não são propriamente negacionistas. São apenas gente que acha que é mais esperta do que os outros.
Conhecemos bem a realidade chinesa caracterizada, desde Deng Xiaoping, pela fórmula mágica de “um país, dois sistemas”. Pois em Portugal vivemos uma situação diferente. Parece que temos instalado um sistema que tudo pode e condiciona e dois países que coexistem embora vivendo de forma muito diferente. As eleições presidenciais recentemente realizadas ajudam a revelar esta realidade. Independentemente das polémicas em torno dos cadernos eleitorais, da questão dos votos dos portugueses não residentes, de se tratar de uma reeleição de um presidente em funções e da situação pandémica, a verdade é que a abstenção rondou os 60%. Em cada 10 potenciais eleitores apenas quatro exerceram o seu direito e cumpriram o seu dever cívico. E desta vez, mais do que em qualquer outro momento, uma quantidade significativa de eleitores expressou a sua vontade de mudar o sistema. Seguramente com André Ventura, mas também, de alguma forma, com Tiago Mayan e Ana Gomes.
O Portugal da televisão, adornado pelos comentadores, é cada vez menos o país real. Marcelo Rebelo de Sousa, atento e perspicaz, refere frequentemente nos seus discursos a existência de diversos “Portugais”. E tem toda a razão. O de quem não sente a sua posição ameaçada e em que pontificam boa parte da classe política e do funcionalismo público e o daqueles que não têm emprego e provavelmente não o terão mais, o dos que esperam meses ou anos por uma consulta médica e que não têm acesso à medicina privada, aqueles que vivem em ambientes de insegurança e que não se sentem protegidos nem pela polícia, o dos que tentam todos os dias lutar pela vida criando micro e pequenas empresas que, caso não prosperem, veem aniquilado o futuro de quem apenas quis empreender, a de empresários que se deparam com cargas fiscais absurdas, regulamentações laborais desfasadas da realidade, burocracias desesperantes e irracionais, jovens com formação mas sem espaço para progredir, casais sem tempo nem condições para fazer crescer as suas famílias, velhos sem esperança cada vez mais isolados e que aguardam apenas o seu último dia.
De entre estes, a maioria ficou em casa. Alguns outros viram a oportunidade de protestar. Fizeram-no de acordo com as regras democráticas, mas querendo demonstrar que “esta democracia” não lhes serve. O fosso entre os que de alguma forma têm uma vida estável e os que estão entregues apenas à sua sorte é cada vez maior. E não se diga que esta realidade é apenas dos mais pobres ou dos menos instruídos. Não é verdade. É transversal a toda a sociedade portuguesa. Quanto maior for este fosso, menor será a possibilidade de unir e de reconciliar os portugueses com as suas instituições e com as regras normais de convivência num país ocidental, moderno, civilizado. De que serve disponibilizar o voto a idosos que sobrevivem num lar ilegal, que justiça haverá em decretar o encerramento dos estabelecimentos comerciais e permitir que durante meses a fio estes sejam obrigados a pagar pelo menos metade da renda, que utilidade terá para a sobrevivência das empresas criar complexos esquemas de incentivos que depois a banca não pode ou não quer fazer chegar a quem mais precisa, de que serve anunciar vagas sem fim na saúde se não há médicos ou enfermeiros disponíveis para as preencher, que conforto dá receber mensagens a dizer que a vacina está aí quando ela só será efetiva para a maioria de nós lá mais para o final do ano. Estas e tantas outras perguntas sem resposta são o verdadeiro fundamento do desencantamento e da revolta. O tão falado “sistema” está montado para beneficiar alguns e proteger aqueles que forem necessários para o manter. Mas cada vez são mais os que não colhem qualquer benefício, antes pelo contrário, nem se sentem protegidos. Por isso continuaremos a assistir a um combate entre os que pretendem manter privilégios e aqueles que se sentem prejudicados e querem que tudo mude rapidamente mesmo que não saibam muito bem como o fazer. As instituições estão em crise e quem está encarregado de as defender não o faz com equidade nem pelo exemplo. Os partidos estão a comportar-se como aqueles grupos de amigos que no meio do confinamento combinam jogar às cartas no café e entram às escuras pela porta dos fundos. Não são propriamente negacionistas. São apenas gente que acha que é mais esperta do que os outros. É por isso urgente que alguém, dentro dos partidos, demonstre ser capaz de promover a reforma do sistema e de expurgar os seus males endémicos. Se assim não for a mudança acontecerá na mesma. Mas de forma mais brutal e dramática. Mesmo num país de brandos costumes.