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22 de Março de 2021 às 10:00

Homens bons e homens maus

Em algumas organizações é habitual dizer-se que não é possível transformar homens maus em homens bons. Mas que é possível transformar homens bons em pessoas melhores. Pois na política parece que se pretende exatamente o contrário.

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A classe política, muitas vezes de forma injusta, é vista pela generalidade da população como improdutiva, permeável aos interesses económicos e mais preocupada com a defesa de privilégios pessoais do que com o bem comum. São raros os políticos que escapam a estes rótulos, especialmente aqueles que exercem funções executivas, seja no governo seja nas autarquias locais. Vão escapando deste anátema os que mais protestam, os que falam mais alto, os que se encostam aos extremos, os que aproveitam qualquer situação particular para a tornar num comportamento normal de toda uma classe. É assim que os partidos de protesto fazem política na esperança de que o povo sinta que ali estão os que pensam como eles e que verdadeiramente os representam. Pura demagogia. Quando se aproximam dos círculos mais próximos do poder são normalmente os primeiros a ceder a todas as tentações.

Todos prometem uma reforma do sistema político que permita ir afastando esta imagem. Através da aproximação entre eleitos e eleitores, da redução do número de deputados, da contenção nas despesas associadas à contratação de “boys and girls” vindos diretamente das organizações de juventude dos partidos sem demonstrar formação ou experiência que justifique a escolha ou, entre outras, da transparência no registo de interesses de cada um dos titulares de cargos públicos. Todas estas medidas fazem sentido e certamente ajudariam a iniciar o processo de reconquista da respeitabilidade por parte da classe política. Ao longo dos anos, especialmente no que respeita ao registo de interesses, têm-se feito grandes avanços. A publicitação regular de declarações de rendimentos ou a possibilidade de identificação de conflitos de interesses existem há várias décadas e não só não resolveram o problema da imagem dos políticos como tiveram o condão de afastar os melhores. Não porque a sua idoneidade para o exercício do cargo não fosse garantida, mas apenas porque não queriam estar sujeitos a linchamentos ou julgamentos sumários na praça pública, o mesmo é dizer na comunicação social, sem direito ao contraditório e destruindo carreiras académicas e profissionais honradas, feitas de trabalho e de mérito. Mas os caciques locais dos diferentes partidos não se importaram muito com esta fuga dos melhores. Pelo contrário, viram nesse facto a possibilidade de eles próprios ascenderem mais rapidamente a funções com que nunca sonharam.

O PSD, num arremedo que Rui Rio parece apreciar, vem propor agora que as declarações de interesse vão ainda mais longe. Para além do património e dos interesses profissionais, pretende que os deputados e titulares de cargos públicos informem também a comunidade se são membros de associações ou organizações eufemisticamente classificadas como “discretas”. Cabe aqui quase tudo. Desde aquelas de que todos falam, como a Opus Dei ou a Maçonaria, até a todo o tipo de expressões orgânicas da sociedade civil que agregam cidadãos livres em torno de múltiplos objetivos de natureza confessional, filantrópica, cultural, artística, de solidariedade ou outra. Esta violação grosseira da liberdade individual e da privacidade a que cada pessoa tem direito não é mais nem menos do que um ajuste de contas que o líder social-democrata (e eventualmente outros que o queiram seguir) com quem ousar discordar. É uma “purificação” da espécie feita à medida dos caprichos de quem já está instalado limitando ainda mais a chegada de gente “inconveniente”. Em algumas organizações é habitual dizer-se que não é possível transformar homens maus em homens bons. Mas que é possível transformar homens bons em pessoas melhores. Pois na política parece que se pretende exatamente o contrário. Ao limitar a entrada dos melhores, dos mais preparados, dos mais livres, estamos a deixar campo aberto a que a escolha recaia sobre os mais dependentes que inevitavelmente nos conduzirão a assistir a uma deterioração ainda maior da classe política. Como se não bastasse o que já temos, eis que ainda há quem queira transformar políticos maus em políticos ainda piores.

 

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