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Opinião
10 de Agosto de 2018 às 13:00

Folha de assentos

Os elementos andam em convulsão. O fogo devora quilómetros em poucas horas. Indomável, prova que é ainda limitado o nosso domínio da natureza. Parecemos condenados a este padecimento e impotência, apesar dos aviões e dos milhares de combatentes.

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estufa. É notório que, depois das tragédias do ano passado, houve melhorias na prevenção e combate aos incêndios. Só faltava que não houvesse! Progressos: mais sensibilização para a limpeza das matas, mais prevenção, mais cultura de segurança, um dispositivo mais organizado e um combate mais forte aos incêndios. Impasses: cadastro florestal continua por actualizar, falta de intervenção e fiscalização em zonas críticas (como é o caso da serra de Monchique), falta de acessos e de aceiros… As mudanças estruturais, nomeadamente a cultura de prevenção e o ordenamento florestal, vão demorar anos a consolidar e pressupõem empenhamento permanente. Até porque as alterações climáticas tendem a agravar-se. O vento, as temperaturas elevadas, as trovoadas secas e outros fenómenos extraordinários alimentam fogos durante muitos dias sem antídotos à altura. O cenário é pessimista e um estudo de cientistas dinamarqueses, australianos e alemães, parcialmente divulgado esta semana, alerta para a possibilidade de a Terra se tornar uma estufa. Para o evitar, não basta reduzir as emissões de CO2. É preciso, por exemplo, melhorar a gestão das florestas, dos solos, remover dióxido de carbono da atmosfera… O caderno de encargos é muito pesado.  

fogo. Os elementos andam em convulsão violenta. Há alguns milénios, os chineses criaram a teoria dos cinco elementos: a água, o fogo, a madeira, o metal e a terra, a que faziam corresponder os primeiros cinco números, um animal, uma víscera, um sabor, uma planta, um planeta… Tudo poderia depender de um elemento. Os gregos identificaram quatro elementos: a água, o ar, o fogo e a terra, que subdividiam em variedades. O fogo, por exemplo, podia assumir várias espécies: a chama ardente, os resíduos incandescentes da chama e a luz. No século XIX, o filósofo e poeta Gaston Bachelard olhava para estes elementos como fazendo parte de uma "fisiologia da imaginação". Dizia que os quatro elementos eram "as hormonas da imaginação". Filosofias, astrologias, alquimias, tradições místicas, simbolismos vários, muitas correntes se alimentam destes elementos transformadores para interpretarem os homens e a vida. O fogo que por aí anda aviva a ideia de que é ainda limitado o nosso domínio da natureza. 

ansiedade. Dominar a ansiedade é um dos maiores desafios para o exercício do poder. Mais ainda para quem o quer conquistar. Rui Rio sabe-o bem. Muito cedo baixou expectativas e deu mostras de não ter pressa e estar mais interessado em ganhar crédito pela positiva, seja em propostas alternativas, seja em entendimentos com o Governo. Isto é, pouca crítica e algumas propostas e compromissos. Já se contava com a desilusão da bancada parlamentar e de algumas figuras que não se revêem em Rio. Luís Montenegro, Pedro Duarte e Santana Lopes não surpreendem. O que surpreende é a pouca intensidade da oposição do líder do PSD e alguns sinais contraditórios do seu discurso. Sabemos que o Chão da Lagoa transfigura muitos dos líderes que procuram banhos de multidão. Mas pensávamos que Rui Rio resistiria ao calor da festa. Dizer que o problema de Portugal foi não ter tido "mais quatro ou cinco Albertos Joões por esse país fora" é extraordinário. O entusiasmo levou-o mesmo ao sonho: "O que não seria Portugal hoje!" Corre muita poncha no Chão da Lagoa, mas o entusiasmo apenas cheira a ansiedade. Falta cabeça fria e mais iniciativa.  

marcelo. Já nada nos espanta na exposição pública do Presidente Marcelo. Quebrar protocolos é a regra. Ainda assim… vê-lo sozinho, ou quase, conduzindo um pequeno carro, metendo combustível numa estação de serviço, surgindo de mochila e toalha na praia fluvial de Vouzela perante o espanto dos veraneantes, recomendando cuidados com o sol… é sempre um espanto. Não discordo da proximidade ou da desdramatização dos percalços diários, nem da pedagogia que transporta, mas dos riscos de desgaste da palavra do Presidente da República. Marcelo está com todos e a todos transmite esperança. Não está na sua mão dar-lhe consequência para que não se transforme em frustração. Cabe-lhe fazer o possível para que o Estado não falhe, como falha muitas vezes. Em qualquer caso, promover os recantos aprazíveis e menos conhecidos do Interior é útil. Um contraponto ao Presidente-bombeiro do ano passado… 

juízo. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses tem um canal de vídeo online. O vídeo disponível tem como tema: "(In)segurança nos Tribunais: Elevadores." Título: "Podemos confiar?" A mensagem em off começa assim: "Todos os dias milhares de pessoas entram e saem dos tribunais em Portugal. E se um dia for a tribunal e… cair num poço do elevador? Sabe quem é o responsável? O Estado, que deve dar o exemplo, estará a cumprir a lei? Podemos confiar? (…)." A primeira perplexidade é a escolha singular dos elevadores como preocupação primeira da associação dos juízes. A segunda, a iminência de quedas em poços de elevador dos tribunais portugueses. Não fazia ideia de que esta era uma questão central da justiça. Muito menos de que os juízes nada podem fazer para evitar quedas nos poços dos elevadores dos seus tribunais. O vídeo termina apelando à denúncia às autoridades: "Exija responsabilidades a quem as tem." Ou seja, se pensa que os magistrados podem fazer alguma coisa pelos tribunais onde fazem justiça, desengane-se. Nem sequer podem evitar que caiamos num poço do elevador. Impotência sem limite. Solução: "Denuncie às autoridades." Pelos vistos, os juízes não são Estado. Nem autoridades. Pedagogia cívica, sem dúvida. 

esgrimir. Não é deste ano. Tem dois anos e foi publicado no ano passado em Portugal. É um livro soberbo, divertido, bem escrito, bom para ler nas férias. Chama-se "Um Gentleman em Moscovo", do americano Amor Towles (D. Quixote). A história passa-se em Moscovo em plena revolução bolchevique e conta a odisseia do conde Aleksandr Rostov, condenado a prisão domiciliária no Hotel Metropol. Foi salvo da condenação à morte por um poema. No interrogatório começam por lhe perguntar a profissão. "Um cavalheiro não tem profissão", responde Rostov. "Então, como é que ocupa o seu tempo?" O conde: "Com jantares, conversas, leituras, reflexão. O habitual." Perguntado sobre se escreve poesia, a resposta é reveladora da verve: "Já me aconteceu esgrimir a pena, sim." O livro é volumoso, mas cheio de peripécias. Muitas para o circunscrito espaço de um hotel onde circulam grandes personagens e onde o aristocrata se torna amigo dos porteiros, do cozinheiro, da costureira, do barbeiro ou do encarregado da garrafeira. Um divertimento cheio de histórias.


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