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Opinião
01 de Junho de 2018 às 13:00

Folha de assentos

Enquanto os socialistas portugueses celebravam os seus sucessos em congresso, chegavam da Europa sinais desagregadores. A União corta fundos de coesão e a Itália e a Espanha mergulham em crises que podem arrastar-se. Por cá, receiam-se contágios. A morte assistida teve chumbo parlamentar. Fica o combate por mais e melhores cuidados paliativos.

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morte. Falar da morte é difícil. Contraria aquilo que sonhámos ser a nossa natureza eterna. Há poucos dias, a escritora Rosa Montero mostrava-se chocada: "Sendo a morte a única certeza que temos do nosso futuro, a humanidade não foi capaz até agora de regular, ordenar e preparar esse destino inevitável". A ideia de que o nosso destino não nos pertence e nos ultrapassa faz parte das culturas e das religiões que construímos ao longo dos séculos. Também por isso, o nosso confronto com as fronteiras da vida é uma experiência individual insubstituível, mas nunca desligada dos ambientes sociais em que nos inserimos. A ideia de pecado e de crime quando alguém decide o seu último destino é em si própria aberrante. Tem um lastro histórico antigo, tido por inquestionável, mas que importa discutir mais e mais. Vivemos num século em que apenas metade das pessoas que necessitam de cuidados paliativos os conseguem. Mais de duas dezenas de milhões de pessoas, incluindo crianças (dados da revista Lancet), morrem anualmente tolhidas de sofrimento. A solução não tem de ser a eutanásia. Mas vale a pena ampliarmos as possibilidades de decidirmos do nosso destino. Não quereremos ser deuses, mas dispor mais da vida e da morte. 

dignidade. Falar da morte pode parecer fácil. Quem conhece de perto vidas colocadas no limite avalia melhor os dilemas da fronteira. São as experiências individuais e familiares que nos dão a maturidade do juízo. A eutanásia, definida como acto intencional de proporcionar a alguém uma morte indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável ou dolorosa, é uma questão velha como a vida. Tão velha como escondida e indizível. Trazida à Assembleia da República ganhou relevância e dignidade. O debate parlamentar desta semana juntou-se a outros debates, úteis para percebermos melhor o que está em causa, mas ainda insuficientes. Importa não confundir eutanásia, suicídio assistido ou distanásia; importa respeitar a vida e a morte; importa retirar da penumbra as circunstâncias do sofrimento; importa colocar a morte na agenda pública. A reprovação dos projectos legislativos sobre a morte medicamente assistida mostrou uma grande divisão parlamentar. O assunto não está encerrado. As dúvidas são mais do que as certezas e importa continuar a trocar ideias sobre o assunto. Não é um combate entre os da vida e os da morte. É um combate pela responsabilidade e pela dignidade. 

socialistas. A minha memória não alcança um congresso em que o discurso final do líder não fizesse referência aos adversários e/ou aos aliados. Foi o que fez António Costa no encerramento de um dos congressos mais confortáveis de sempre. E isso diz bem de como se coloca hoje no tabuleiro do poder. Parceiros descontentes, mas obrigados; opositores ao ataque, mas capazes de celebrar acordos com o Governo socialista. Um partido charneira neste contexto e num cenário económico e financeiro positivo é tudo o que um líder político pode ambicionar. António Costa tem obviamente mérito por ter chegado a este conforto. Há dois anos, muitos duvidavam do seu futuro. O 22º congresso cumpriu calendário. À falta de outras motivações dedicou-se ao debate ideológico. Mais à esquerda? Ou mais ao centro? Como se o PS não fosse um partido pragmático que, em cada momento, avalia a correlação de forças, como se diz em linguagem marxista. E, por isso, a ideia de afunilar o alvo eleitoral é tão interessante como irrealista. Os media morderam o isco da sucessão de Costa e dos putativos candidatos. No final, lembrou que ainda não tinha metido os papéis para a reforma. Por enquanto, os ventos correm de feição. 

satisfação. O congresso do PS foi palco de uma auto-satisfação excessiva, congratulatória. Excelsou-se Mário Centeno, o ausente mais presente, que acabou por aparecer nos derradeiros minutos. Tem razão o PS ao reivindicar o mérito de ter gerido bem as contas públicas nestes dois anos e meio. Mas ficava-lhe bem dizer que nem sempre foi assim e que pagámos um preço mais alto do que o da crise das dívidas soberanas. Ficava-lhe bem dizer que nem tudo correu bem, que há muito por fazer até ao final da legislatura, que os tempos que aí vêm indiciam uma incerteza maior do que a que já conhecemos. Basta olhar para o preço do petróleo ou para a situação em Itália. Ficava-lhe bem um compromisso mais efectivo com a transparência na vida política e com a prevenção e o combate à corrupção. As menções de alguns dirigentes ficaram aquém do necessário quando nos confrontamos com défices acentuados de confiança na democracia. O discurso social de António Costa é avisado e importante. Mais educação superior e ensino profissional, melhor emprego, horários de trabalho modulados ao longo da vida, regresso de emigrantes… são boas ideias. Só falta concretizá-las. 

naufrágio. O descrédito dos dois principais partidos espanhóis acentuou-se. A corrupção minou o PSOE e o PP. O caso Gürtel revelou uma enorme teia de corrupção política no seio do Partido Popular, que se estendeu no tempo de José María Aznar e de Mariano Rajoy. Empreitadas, subtracção de fundos públicos, donativos ilegais e dinheiro sujo a circular entre dirigentes do partido começaram a ser investigados por Baltasar Garzón, que viria a ser suspenso e afastado do caso. Os condicionamentos ao processo foram numerosos, mas insuficientes para evitar condenações que variam entre os 18 e os 38 anos de prisão. Situações de enorme gravidade, cujas consequências políticas não foram retiradas pelo presidente do governo. Rajoy resiste. O PSOE apresentou uma moção de censura, que poderá não ser aprovada por exigir uma alternativa de governo e os opositores do PP estarem divididos. A Espanha está num impasse. Precisa de eleições e de entendimentos mínimos que garantam capacidade e credibilidade políticas. Juan Luis Cebrián fala de naufrágio do Estado espanhol. A Espanha ameaça desfazer-se em pedaços. E não é apenas pelo desaire da Catalunha. É a falência do Estado e das elites políticas. 

caixa. Depois de "A Vida e a Morte dos Nossos Bancos", a investigação da jornalista Helena Garrido centrou-se agora no caso do banco público, a Caixa-Geral de Depósitos. Caso e casos. Guerras de poder e negócios. Muitos são dissecados num novo livro - "Quem Meteu a Mão na Caixa" (Contraponto). A Caixa foi durante muitos anos coutada do bloco central. PS e PSD aí colocaram antigos membros de governo, alguns deles competentes. A autora diz que uma coisa é os governos precisarem da Caixa como instrumento de política financeira, outra é a Caixa "fazer favores, construir empresas e empresários de papel, alimentar a especulação financeira". Conclui Helena Garrido: "O regime resistiu a uma nova Caixa. Precisa de ter mão na Caixa. Não pode é meter a mão na Caixa". A CGD esteve perto do colapso. Somou créditos ruinosos. Quase seis mil milhões de euros são já dados como perdidos. A Caixa está agora a renascer. Talvez tenhamos aprendido a lição. 


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