Opinião
Folha de assentos
A semana recentrou-nos nos valores que dão sentido à vida. A democracia vai madura de 44 anos e a precisar de cuidados. Muitas preocupações, à esquerda e à direita, e um alerta de Marcelo: isto não vai lá com "messianismos" e ele próprio não tem "vocação salvífica". Chamadas à responsabilidade.
compromisso. A democracia é arte do compromisso, mas não exageremos. É o que diz António Costa, a poucas semanas de concorrer a mais um mandato como secretário-geral e da realização do congresso do PS. Os acordos celebrados com o PSD deixaram um notório incómodo no BE e no PCP. Até a forma, apesar da porta fechada, foi considerada "ostensiva" pelos comunistas. Mas o incómodo foi sentido também no PS. Manuel Alegre escreveu que "o caminho para o PS é fugir à regra da tentação centrista e manter a excepção da convergência à esquerda". Respondia assim a Augusto Santos Silva, que tinha dito que "o caminho não é oscilarmos para os extremos". Que o PS sublinhou a sua centralidade, depois do aperto de mão a Rui Rio, é um facto. Que tenha espaço ou vantagem em alargar entendimentos é outra questão. Daí o cuidado com o "excesso", afirmado por Costa. Ganhou o Governo ao PSD porque convergiu com os partidos à sua esquerda, mesmo que muito os separe, mesmo que esse muito se evidencie cada vez mais com o aproximar das eleições. Hoje talvez não pareça, mas os grandes adversários desta "geringonça" continuam a ser o PSD e o CDS. O PS sente-se mais forte, o que mais o obriga a ser claro quanto ao caminho de futuro.
lassidão. E vão 44. O 25 de Abril celebra-se para renovarmos o compromisso com a liberdade e a democracia. Nos discursos evocativos, Marcelo Rebelo de Sousa evita recados. Prefere centrar atenções em factores de unidade. Mas há sempre leituras mais finas e direccionadas. Este ano, o centenário do envolvimento de Portugal na I Guerra foi pretexto para chamar a atenção para três temas: a vantagem da unidade europeia, as Forças Armadas como factor nuclear de identidade nacional e a renovação do sistema político. Marcelo está preocupado com a lassidão e o vazio que possam abrir espaço a "apelos populistas, messiânicos ou providencialistas". Já no ano passado tinha aflorado o perigo populista, alertando para que "todas as estruturas do poder político, do topo do Estado à administração pública e, naturalmente, aos tribunais, entendam que devem ser muito mais transparentes, rápidas e eficazes". Agora, talvez antecipando qualquer sinal de deslaçamento ou desequilíbrio de poderes, qualquer indício perturbador da separação e interdependência dos poderes, entendeu esclarecer que ele próprio não tem "vocação salvífica". Há demasiados sinais de fadiga democrática. Cada um tem de assumir a sua responsabilidade.
sequestro. O antigo ministro da Economia de José Sócrates foi uma das caras mais salientes do Executivo socialista, apesar de ser um independente, pelo menos em termos partidários. O seu nome ficou associado às energias renováveis, ao Plano Tecnológico, que exportou para a União Europeia, e a um certo desassombro na intervenção pública. Manuel Pinho tem um bom currículo académico, deixou marcas positivas na administração pública (foi director-geral do Tesouro e presidente da Junta do Crédito Público) e no FMI. Dez anos antes de chegar ao governo, fez carreira no Banco Espírito Santo. Daí passou directamente para o Ministério da Economia. As suspeitas que vieram a público sobre pagamentos do BES enquanto foi ministro são muito graves. E o silêncio adensa a suspeita. A ser verdade, um membro do governo pago por um privado é o sequestro do Estado. Pior é difícil imaginar.
vídeos. As imagens de interrogatórios judiciais levantam vários problemas. Não é apenas a divulgação que merece contestação, há questões prévias por esclarecer. O Ministério Público pode filmar testemunhas e arguidos por sua livre decisão? A testemunha ou o arguido têm de autorizar a filmagem? É pressuposto captar-se imagem e som apenas de interrogados? E dos interrogadores? Admitindo que se procuram expressões corporais dos interrogados, como poderão analisar-se sem conhecermos a interacção com os interrogadores? As perguntas são muitas e têm decerto resposta. Por enquanto, apenas se questiona a divulgação das imagens do processo Marquês. Não apenas de Sócrates, mas de muitos arguidos e testemunhas. Há muito o processo caiu na rua e mereceu - e bem - um escrutínio detalhado. Os vídeos não trazem novidade, mas provocam sentimentos vários. Emoções, sensações e o "direito" a ver tudo. Para ser perfeito, um dia todos os interrogatórios passarão em contínuo num qualquer ecrã que tenhamos à mão. E seremos chamados a votar num teleinquérito, como se fôssemos jurados… Já agora, um jornalista não deve arrogar-se o direito natural de se sobrepor à lei. Deve ter a responsabilidade de assumir a excepção de a desrespeitar em nome de um valor maior. Não é o caso.
bartoon. Fez 25 anos esta quarta-feira que Luís Afonso aceitou o desafio de substituir Sam e o seu Guarda Ricardo, no jornal Público. Criou o Bartoon, onde um barman (com bigode) cavaqueia ao balcão com os mais inesperados clientes: deus, o diabo, o homem das cavernas, o agente secreto, o marciano, o caixeiro-viajante… A tira diária é um bom começo de jornada. Subtil, mordaz, sublinha o que de mais relevante surge no desvario dos dias. Atento e arguto, os seus diálogos de balcão são depurados e bem-humorados. Não precisa de acidez, basta-lhe a ironia. Os nossos dias não seriam os mesmos sem esta arte de sorrir. A bonomia de Luís Afonso espalha-a em vários suportes. Por exemplo, o SA, aqui no Negócios, ou A Mosca, na RTP3 e na Antena1. Não lhe escapa nada. Registados em livro ficaram 25 anos de Bartoon (Arranha-céus/Público). Como diz João Paulo Cotrim, a abrir: "Vai mais um copo, que a vida serve-se fria?" Que venham muitos.
indie. O IndieLisboa está aí e vai já na 15.ª edição. Festival de cinema independente, é herdeiro e continuador do espírito do Festival de Cinema da Figueira da Foz que, desde os anos 70 e durante três décadas, nos trouxe autores e cinematografias desconhecidas. No cartaz deste ano, há muito por onde escolher. Destaco as homenagens à realizadora argentina Lucrecia Martel e ao cineasta francês Jacques Rozier. Martel é o rosto mais forte do cinema argentino contemporâneo e, entre os seus filmes, traz "Zama", uma co-produção portuguesa centrada na história de um oficial espanhol no século XVII. Rozier distinguiu-se na "nouvelle vague", mas os seus filmes nunca tiveram grande divulgação. Nenhum estreou em Portugal. Oportunidade para os conhecer entre centenas de filmes, que incluem também documentários musicais como "Studio 54", de Matt Tyrnauer, e "Ryuichi Sakamoto: Coda", de Stephen Nomura Schible. Muito para ver até 6 de Maio.
lassidão. E vão 44. O 25 de Abril celebra-se para renovarmos o compromisso com a liberdade e a democracia. Nos discursos evocativos, Marcelo Rebelo de Sousa evita recados. Prefere centrar atenções em factores de unidade. Mas há sempre leituras mais finas e direccionadas. Este ano, o centenário do envolvimento de Portugal na I Guerra foi pretexto para chamar a atenção para três temas: a vantagem da unidade europeia, as Forças Armadas como factor nuclear de identidade nacional e a renovação do sistema político. Marcelo está preocupado com a lassidão e o vazio que possam abrir espaço a "apelos populistas, messiânicos ou providencialistas". Já no ano passado tinha aflorado o perigo populista, alertando para que "todas as estruturas do poder político, do topo do Estado à administração pública e, naturalmente, aos tribunais, entendam que devem ser muito mais transparentes, rápidas e eficazes". Agora, talvez antecipando qualquer sinal de deslaçamento ou desequilíbrio de poderes, qualquer indício perturbador da separação e interdependência dos poderes, entendeu esclarecer que ele próprio não tem "vocação salvífica". Há demasiados sinais de fadiga democrática. Cada um tem de assumir a sua responsabilidade.
vídeos. As imagens de interrogatórios judiciais levantam vários problemas. Não é apenas a divulgação que merece contestação, há questões prévias por esclarecer. O Ministério Público pode filmar testemunhas e arguidos por sua livre decisão? A testemunha ou o arguido têm de autorizar a filmagem? É pressuposto captar-se imagem e som apenas de interrogados? E dos interrogadores? Admitindo que se procuram expressões corporais dos interrogados, como poderão analisar-se sem conhecermos a interacção com os interrogadores? As perguntas são muitas e têm decerto resposta. Por enquanto, apenas se questiona a divulgação das imagens do processo Marquês. Não apenas de Sócrates, mas de muitos arguidos e testemunhas. Há muito o processo caiu na rua e mereceu - e bem - um escrutínio detalhado. Os vídeos não trazem novidade, mas provocam sentimentos vários. Emoções, sensações e o "direito" a ver tudo. Para ser perfeito, um dia todos os interrogatórios passarão em contínuo num qualquer ecrã que tenhamos à mão. E seremos chamados a votar num teleinquérito, como se fôssemos jurados… Já agora, um jornalista não deve arrogar-se o direito natural de se sobrepor à lei. Deve ter a responsabilidade de assumir a excepção de a desrespeitar em nome de um valor maior. Não é o caso.
bartoon. Fez 25 anos esta quarta-feira que Luís Afonso aceitou o desafio de substituir Sam e o seu Guarda Ricardo, no jornal Público. Criou o Bartoon, onde um barman (com bigode) cavaqueia ao balcão com os mais inesperados clientes: deus, o diabo, o homem das cavernas, o agente secreto, o marciano, o caixeiro-viajante… A tira diária é um bom começo de jornada. Subtil, mordaz, sublinha o que de mais relevante surge no desvario dos dias. Atento e arguto, os seus diálogos de balcão são depurados e bem-humorados. Não precisa de acidez, basta-lhe a ironia. Os nossos dias não seriam os mesmos sem esta arte de sorrir. A bonomia de Luís Afonso espalha-a em vários suportes. Por exemplo, o SA, aqui no Negócios, ou A Mosca, na RTP3 e na Antena1. Não lhe escapa nada. Registados em livro ficaram 25 anos de Bartoon (Arranha-céus/Público). Como diz João Paulo Cotrim, a abrir: "Vai mais um copo, que a vida serve-se fria?" Que venham muitos.
indie. O IndieLisboa está aí e vai já na 15.ª edição. Festival de cinema independente, é herdeiro e continuador do espírito do Festival de Cinema da Figueira da Foz que, desde os anos 70 e durante três décadas, nos trouxe autores e cinematografias desconhecidas. No cartaz deste ano, há muito por onde escolher. Destaco as homenagens à realizadora argentina Lucrecia Martel e ao cineasta francês Jacques Rozier. Martel é o rosto mais forte do cinema argentino contemporâneo e, entre os seus filmes, traz "Zama", uma co-produção portuguesa centrada na história de um oficial espanhol no século XVII. Rozier distinguiu-se na "nouvelle vague", mas os seus filmes nunca tiveram grande divulgação. Nenhum estreou em Portugal. Oportunidade para os conhecer entre centenas de filmes, que incluem também documentários musicais como "Studio 54", de Matt Tyrnauer, e "Ryuichi Sakamoto: Coda", de Stephen Nomura Schible. Muito para ver até 6 de Maio.
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