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Opinião
22 de Dezembro de 2017 às 14:00

Folha de assentos

Sucedem-se os casos. Já não concebemos a vida pública a não ser pela sucessão de episódios mais ou menos escandalosos. São sintomas e indícios do estado do País, ainda assim demasiado insuficientes para um retrato. Enche-se a boca de estratégia, de sustentabilidade e de futuro, mas são os casos que nos ocupam a atenção.

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raríssimas. Boa parte da percepção da vida pública faz-se de casos. É fragmentária, desproporcionada e alimentada a escândalo. A denúncia de irregularidades na gestão da Raríssimas começou com ingredientes fortes na chamada de atenção: vestidos caros, salários altos, favorecimento familiar, envolvimento de personalidades políticas influentes… Não demorou a provocar a queda do secretário de Estado da Saúde e a ameaçar o ministro da Solidariedade. Na procura de dividendos fáceis, alguma precipitação conduziu a suspeições prematuras e generalizadas. A confiança, capital raro, põe em causa redes de solidariedade. Hoje, sabe-se mais do que o escândalo de partida, mas não o suficiente para tirarmos conclusões definitivas. Além dos vestidos ou das gambas, há questões sérias por esclarecer e que é preciso esclarecer. Registo três factos sólidos: é perigoso o cruzamento entre redes de influência político-partidária e redes de voluntariado de solidariedade social; a confiança nas instituições do designado terceiro sector é directamente proporcional à transparência e ao escrutínio que merecerem; os julgamentos sumários costumam dar mau resultado.

níveis. Uma após outra, as agências de rating - aquelas que discricionariamente influenciam a nossa vida nos mercados financeiros, que merecem muitas dúvidas de legitimidade e funcionamento - estão a retirar Portugal do lixo. A Fitch subiu mesmo o rating português em dois níveis. Parece que os que contestaram e contestam estes avaliadores de países e de empresas só têm que render-se à evidência dos cartões vermelhos, agora que são verdes devem calar-se. Por não ter de ser assim, importa dizer que o caminho percorrido por Portugal nos últimos dois anos foi decisivo para estes resultados. Socialistas aliados a comunistas e outros esquerdistas devolveram rendimentos, melhoraram todos os indicadores da economia e ganharam a confiança do País, da Europa e dos agentes económicos. A síntese é esta. Parecia impossível, está cheia de contradições, teve percalços, gera dúvidas, mas funciona. Nada a acrescentar, a não ser que a economia e as finanças são essenciais ao bem-estar social, mas não suficientes. Dizer, como António Costa disse, que foi "um ano saboroso" é manifestamente exagerado. Mesmo que os incêndios não tivessem sido o que foram. 

desigualdades. Não é novidade. Até parece normal: os ricos estão mais ricos. A boa notícia, que não apaga a primeira, é que os pobres estão um pouco menos pobres, mas não em todo o lado. As conclusões são do World Inequality Report 2018, elaborado pelo World Inequality Lab. O lado mais animador é que os 50% mais pobres viram o seu rendimento crescer nas últimas décadas. Ainda assim, entre 1980 e 2016, a desigualdade é tão grande que o rendimento detido pelos mais ricos (1% da população) cresceu duas vezes mais do que o dos 50% mais pobres. Médio Oriente, África Subsaariana, Índia e América do Norte são as regiões de maior desigualdade. Na Europa o fosso é menor. Pelo contrário, nos EUA, as desigualdades não param de aumentar. A reforma fiscal que Trump fez aprovar irá acentuar ainda mais esta realidade a médio e longo prazo, o que faz antever relações sociais mais conturbadas. Paul Krugman diz que a nova legislação fiscal favorece esmagadoramente os proprietários de empresas ou de activos financeiros. Qualquer americano que trabalhe para outro americano é tratado como um cidadão de segunda, diz Krugman. 

vazio. A UE enfrenta um desafio de sobrevivência e afirmação. Uma e outra coisa estão interligadas. Não sobreviverá se não demonstrar a força agregadora do seu modelo de valores, democracia e progresso económico e social. Não se afirmará nem sobreviverá se permitir que os inimigos dos valores democráticos violem as regras da União e minem a paz na Europa. O que acontece na Polónia e na Hungria, o que acaba de suceder na Áustria com um governo de coligação com a extrema-direita xenófoba, não são bons augúrios. Há uma exigência que se coloca aos dirigentes europeus, simultaneamente interna e externa: um aperfeiçoamento das suas regras de funcionamento político e económico, o que obriga a garantias de cumprimento, seja no plano do Estado de direito democrático ou das regras orçamentais, seja na integração de refugiados e imigrantes. Para ser forte, a Europa precisa de voltar a provar a si mesma que é um espaço de progresso e que tem capacidade para ser um actor mundial relevante. O vazio internacional criado pela administração americana, que vai sendo ocupado pela China e pela Rússia, precisa de outra voz. Talvez Macron e Merkel queiram impulsionar um novo fôlego europeu.

nacionalismos. A semana foi de eleições e a Catalunha continua à procura de um caminho que a apazigue. Não será fácil, pela incapacidade de diálogo entre Madrid e Barcelona e pela radicalização a que chegou a convivência política na Catalunha. A Constituição espanhola olha para Espanha como uma nação que pode comportar várias nacionalidades. As pretensões de autonomia e de independência ficaram aquém dos desejos. Pensar o nosso vizinho ibérico e a crise catalã tem por estes dias um bom auxiliar. Filipe Vasconcelos Romão acaba de publicar "Espanha e Catalunha - Choque entre Nacionalismos" (Book Builders). Não podia ser mais oportuno. O exercício é distanciado, ajuda a perceber o processo histórico e é claro quanto ao futuro: "Por muito que custe ao independentismo e aos seus simpatizantes, a Catalunha não será, a médio prazo, um Estado independente reconhecido pela comunidade internacional e pela União Europeia. E, a longo prazo, se vier a sê-lo, nunca o será pela via unilateral".

cine-teatro. É uma peça de teatro e é um filme. "Noite Viva" é um original do irlandês Conor McPherson adaptado por João Lourenço e Vera San Payo de Lemos. No Teatro Aberto, o palco assume uma garagem onde se enrola e desenrola uma tela. As histórias e as personagens vivem no palco e prolongam-se em filme. Vão e vêm. Não tinha de ser assim. A peça destinava-se ao teatro, mas João Lourenço quis parti-la e ligá-la com a linguagem do cinema. O resultado é notável. O filme foi realizado pelo encenador e por Nuno Neves. Podiam e podem ser dois objectos autónomos, mas convivem/fluem com uma harmonia surpreendente. As histórias de McPherson trabalham a solidão, encontros e desencontros em busca de ligação. Esta "Noite Viva" alimenta-se de desencantos e de sonhos, violência e ternura. Retrata um quotidiano comum de gente desencaminhada, que perdeu o carreiro à procura de rumo. O trabalho dos actores (Vítor Norte, Rui Mendes, Filipe Vargas, Bruno Bernardo, Anna Eremin, João Perry e muitos outros) é extraordinário. Um desafio ganho e um prazer. Não poupo nos adjectivos porque gostei. Muito. Vale a pena ver. De quarta a domingo no Teatro Aberto, em Lisboa.


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