Opinião
Uma comparação desonesta, de má-fé, ludibriosa
Um dos mais desonestos exercícios intelectuais a que temos assistido nos últimos anos em Portugal é o que passa por esconder, ignorar, apagar, as condições em que o governo anterior teve de exercer funções.
Quem ouve as esquerdas, nos debates parlamentares e televisivos, alguns deles comigo, não pode senão indignar-se com a desfaçatez com que comparam a governação de um país sem troika, sem intervenção externa, sem "rating" de lixo, fora do radar da desconfiança e já nos mercados, com um país à beira da bancarrota, de mão estendida, a braços com uma intervenção externa, com um memorando por cumprir, com uma troika a vigiar, com "ratings" de lixo a enquadrar, com desconfiança generalizada.
As esquerdas falam como se a margem de manobra, as opções, as possibilidades, os recursos ou a conjuntura à disposição deste Governo fossem as mesmas de que dispôs o governo anterior, como se o governo anterior não tivesse herdado um duríssimo e austero programa de ajustamento, como se este Governo não tivesse encontrado o país a crescer, o desemprego a baixar e a confiança a voltar.
Qualquer comparação relativa ao desempenho dos dois governos que ignore esta radical, absoluta, substancial diferença de circunstâncias - que mitigue, relativize, secundarize as dificílimas condições de governação de um país intervencionado numa Europa de moeda única - não pode senão ser considerada uma comparação desonesta.
Mas não é só desonesta, é também uma comparação feita de má-fé.
Porque as condições de governação do governo anterior, a crise, a bancarrota, a troika, a intervenção externa, o endividamento, o lixo, não foram causadas nem provocadas nem alimentadas pelo governo anterior. Pelo contrário, o governo anterior herdou-as, teve de suportá-las, teve de governar com elas, não teve escolha. Mais, o próprio memorando de entendimento que enquadrou o ajustamento foi primeiramente negociado com os socialistas, num momento em que estes já pouca margem de manobra tinham.
E de onde vieram elas, essas condições? Não se pode ignorar que os socialistas governaram durante treze dos dezasseis anos que antecederam a intervenção externa; sim, essas condições vieram de uma quase ininterrupta governação socialista, e essa governação, incapaz de perceber os desafios da conjuntura internacional, é indissociável da evitável exposição de Portugal a uma crise internacional que nos deixou à beira da bancarrota e nas mãos da intervenção externa.
Qualquer comparação relativa ao desempenho dos dois governos que ignore as razões pelas quais o governo anterior teve de aplicar um programa de ajustamento - que presuma, insinue, dê a entender, que o ajustamento se ficou a dever a uma qualquer opção, vontade, desejo, do governo anterior - não pode senão ser considerada uma comparação contaminada de má-fé.
Mas não é só desonesta e de má-fé, é também uma comparação ludibriosa, porque enquanto andamos nestes desonestos exercícios, imputando ao anterior governo responsabilidades e intenções que este não teve nem tem, somos distraídos do exercício essencial, que é perceber o que correu mal nas nossas políticas, saber o que nos tem condenado a crescimentos medíocres desde 2000.
É por isso que qualquer comparação relativa ao desempenho dos dois governos que ignore as condições em que o governo anterior teve de exercer funções é ludibriosa: é porque tem por único objetivo disfarçar o absoluto fracasso do modelo socialista de desenvolvimento que vimos aplicado há décadas.
Advogado
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico